A Décima Terceira bebida

Um corpo andava à deriva pela multidão. As batidas de luz e som arrastavam-no de dançarino em dançarino. Encalhava num ou outro, debitando profecias aleatórias, inspiradas pela enorme quantidade de álcool que tinha ingerido. Euforia total. Abanava-se como podia, não tendo bem a certeza onde estaria o pé direito ou esquerdo. Tinha como referência o Dj, que no alto da sua torre de controlo, ordenava a multidão a manter-se em movimento. Era o seu Norte. A casa de banho ficava para Sul. Aproximou-se do balcão e pediu mais uma bebida. A gaja morena, cheia de brilhantes na cara e um decote que lhe indicava o Oeste, sorria artificialmente. Vasco olhava nos olhos da bartender, na esperança de uma troca de olhares mais significativa, um sinal para avançar. Nada. Um sorriso profissional apenas. Registou a décima segunda bebida no cartão. Décima segunda tentativa e sempre o mesmo sorriso.

– Estás a rir de que? – perguntou ao ruído.

Ela sorriu. Serviu-lhe a bebida. Vasco bebeu de um trago. Tentou devolver-lhe um sorriso babado de whisky, mas esta já trocava sorrisos com outro bêbado. Os ciúmes impulsionaram-no para Sul.

O chão inclinava cada vez mais e Vasco apoiava-se onde podia. A casa estava cheia e havia muito gado à espera de uma foda, mas aquela era diferente. A maré arrastou-o para a casa de banho de tal forma que furou a fila de gajos aflitos para mijar sem pedir licença. Estatelou-se contra o lavatório. A torneira apresentou-se como um enigma. Tocou-a em vários pontos, rodou manípulos invisíveis, bateu palmas e disse adeus na tentativa que saísse água – “Abre-te Sésamo! Merda de tecnologia”- Um somítico fio de água escorreu e ele soltou uma gargalhada triunfal. Vasco tentou juntar o que podia na concha que formou com as mãos. Não era suficiente para beber. Esfregou as mãos na cara. Cambaleou para trás. Tinha que mijar. Os urinóis estavam ocupados. Vasco insultou os ocupantes “Quero mijar! Bazem!”. “Tem calma sócio. Mija aí” aconselhou alguém entre risos. “No lavatório? É isso”.

Voltou à multidão. Mais uma bebida. A Oeste, o decote desaparecia e aparecia atrás de corpos que assaltavam o balcão. Já sabia de cor o caminho. Seguiu de olhos fechados impulsionado pela música. Furou até ao balcão, por entre cotoveladas e empurrões. Pousou triunfalmente o cartão amarrotado em cima da mesa -“Mais uma” – Uma loira roubou-lhe o cartão. Vasco arrancou-o da mão – “De ti não quero nada. Puta!” A loira sorriu, avançou para o próximo cliente. Vasco inclinou-se no balcão à procura da sua bartender privada. Viu-a ao fundo, atendendo um grupo de bêbados. O mesmo sorriso entregue a outros. Sentiu-se traído. Revoltado, voltou as costas ao balcão, furando por entre a muralha de bêbados em direcção à pista controlada pelo Dj. Gajas e gajos agarravam-no com um sorriso parvo na cara. Por entre a espuma de corpos via a bartender distribuindo sorrisos e álcool. O sangue fervia. Queria mais. Queria muito mais do que uma bebida. Tinha que ser mais forte. Uma luz emanava daquela mulher pondo a nu as almas perdidas que rodopiavam no vórtice sonoro. Era ela quem lhe iria servir a décima terceira bebida. Só podia ser ela. Seguiu a luz do decote, voltando a furar com violência por entre o exército que se acumulava no cerco ao balcão. Desbravava terreno como um cruzado em fúria. Mais duas ou três cotoveladas e ela irá reparar na sua valentia. Irá sorrir, desta vez a sério.

Estava já muito perto quando se sentiu a ser arrastado na direcção contrária. Alguém tinha reparado no seu heroísmo. Deslizava pela confusão por entre corpos que troçavam da sua derrota. Despediam-se pela última vez. Perdeste.

Viu as luzes da cidade entrar conflito com o céu estrelado. A silhueta da cidade pregada ao céu e um dragão devorando a lua. Perdeu-se no motim colorido que se misturava à sua volta. Sentiu as costas explodir quando bateu contra a calçada. Dois homens vestidos de preto ameaçavam-no “Não voltes a por aqui os pés!” Selaram o aviso com um pontapé no estômago.

Vasco levantou o corpo dorido enquanto cuspia sangue que tinha sido desviado do seu curso natural. Ainda tentou desafiar os agressores mas sentiu-se frágil. Decidiu afastar-se protegendo o orgulho com insultos vagos. Acabou. Cambaleava pela rua. Não se lembrava com quem tinha vindo ou com quem ia embora. Decidiu continuar a cambalear até que a memória se dignasse a aparecer para ajudar.

Encostou-se a uma parede, não aguentava mais. Deixou-se cair com os olhos nas nuvens que se juntavam para molhar tudo e todos. Vinha aí mau tempo. As nuvens contorciam-se esfrega
ndo-se umas nas outras. Distinguiu uma forma. Viu o dragão aconchegando-se nas nuvens que o assediavam. Procurou um rosto. Dois olhos que o fitavam, narinas fumegando. Um braço escamoso desceu dos céus. Estendeu-lhe um copo – “Bebe” – Bebeu a oferenda em goladas curtas sem tirar os olhos da mão que aguardava. Acabou de beber e devolveu o copo – “Obrigado” – Viu o braço subir em direcção ao colosso que pairava nas alturas. O dragão cheirou o copo e pareceu sorrir. As nuvens dissiparam-se e o dragão partiu, elegante, rumo ao desconhecido de onde tinha saído.

– Que linda figura Vasco! – disse uma voz feminina.

A bartender estava em pé, à sua frente, abanando a cabeça em sinal de reprovação. Vasco sorriu com sinceridade. Já não precisava de mais bebidas. Ela pertencia-lhe.

– Anda, vamos para casa… – disse com carinho – Levanta-te, vá…

Sentiu os braços dela a sua volta. Sentiu-se a levitar. Tentou beijar aquela boca que pairava no seu perímetro. Ali tão perto. Voltou a sentir as pedras da calçada nas costas.

– Estás maluco? Que é que se passa contigo? A noite toda a perseguir-me, a arranjar confusão. Que cena triste. Juro, se voltas a por aqui os pés… nem sei que te faça. Andas estúpido…a sério! Estás a passar dos limites.

Vasco levantou-se sem ajuda e agarrou-a pelos ombros com força. Ao tocar-lhe, uma explosão de sensações percorreu-lhe o corpo inflamando cada molécula. Gritou até os pulmões virarem do avesso e encherem-se de chamas. Sentiu os músculos prenderem e a cabeça a derreter. O fio que o mantinha ligado à vida rebentou e ele sentiu-se cair num abismo por tempos infinitos. Estava calmo. Uma sensação de prazer indescritível. Continuou a cair até perder os sentidos por completo.

Acordou. A cama era dele, o computador, a janela, o candeeiro. Era tudo dele. Estava em casa. Levantou-se. Sentia o corpo dorido e a cabeça a estalar. Que ressaca. Dirigiu-se a casa de banho, abriu a torneira e lavou a cara. De boxers foi à cozinha, na esperança que ainda houvesse Coca-Cola. Não há melhor remédio. Deu uma golada infinita soltando um arroto ainda mais infinito. Parecia não estar ninguém em casa. Decidiu fazer um zapping agarrado à Coca-Cola de litro e meio, mas viu o plano ser impedido pelo presépio que se apresentava na sala. A mãe sentada no sofá parecia desmaiada e os olhos esbugalhados, pare
ciam querer aproveitar a situação para fugir. O pai em pé discutia com dois senhores bem arranjados. “Bom dia” atirou com precaução. A mãe, notando a sua presença deu um salto do sofá e correu a abraça-lo – “A tua irmã… encontraram-na… Deus sabe o que lhe fizeram…” – O pai imediatamente correu a dar apoio à mulher que parecia desmaiar de novo. Vasco sentiu a casa a tremer. Tudo abanava, o chão inclinava, uma erecção crescia nos seus boxers. Ouviu o som das escamas a roçar no exterior do edifício. Viu um olho gigante espreitando pela janela. Viu o pai abraçado à mãe dizendo que tudo ia correr bem. Vasco sabia que enquanto aquele porco não lhe tirasse as mãos de cima nada ia correr bem. Piscou o olho ao dragão. Aquele filho da puta tinha que morrer. Aquela mulher frágil pertencia-lhe.