A Música e o Futuro V

A titulo de despedida – e quero desde já agradecer ao André pela oportunidade, espero ter estado à altura do desafio – achei melhor em vez de introduzir um assunto novo, fazer um pouco de “advogado do diabo” e mostrar que nem tudo é perfeito e que as novas tecnologias e o digital também podem ter um lado perverso.

Continuo a achar que vivemos tempos óptimos para se fazer música, penso mesmo. O estigma do digital” – que se tornou quase um termo pejorativo para certas pessoas – e todos os avanços tecnológicos na área da informática e da música quebraram barreiras e mudaram completamente o paradigma do que é fazer, distribuir e consumir música. Mas apesar disso tudo parece, e talvez faça sentido que assim seja, que os artistas emergentes, apesar de todas as facilidades que o digital trouxe, têm cada vez mais dificuldade em sair do anonimato e ganhar dimensão. Facilidade de acesso a material de música e a democratização de meios e canais de divulgação que a internet e o digital trouxeram criaram também um mercado em que existe tanta oferta e tanta coisa a acontecer que a entropia que daí surge tornou mais difícil alguém se destacar. As barreiras para se ser músico foram derrubadas (ou pelo menos deixaram ter a influência que em tempos tiveram) mas essa ausência de barreiras colocou outros obstáculos.

Essas barreiras antigas, que acredito serem mais relevantes no paradigma antigo da indústria musical: custo de estúdio para gravar e acesso/capacidade de distribuição, tinham uma função por mais perversa que ela pudesse ser. Quem queria fazer música antigamente estava muitas vezes dependente das editoras para financiar ou pelo menos para distribuir eficazmente o seu trabalho. Esta barreira impedia muita gente de puder fazer carreira com a sua música – o cliché eterno do músico à procura do seu contrato discográfico – mas assegurava que existia um número limitado de lançamentos e que quem tivesse a prestar atenção, inevitavelmente, iria ouvir falar do mesmo lançamento. Havia portanto profissionais que com mais ou menos talento filtravam e escolhiam os artistas que iriam ter uma oportunidade. E a nossa atenção era condicionada, mas também mais focada.

Hoje com o formato digital e com a capacidade de colocarmos a nossa música para toda a gente ouvir, sem filtros, sem custos e sem barreiras é possível qualquer pessoa no mundo ouvir a nossa música. O lado perverso desta acessibilidade universal à nossa música é que o mesmo é possível para todos os músicos. E numa altura é que cada vez mais a nossa atenção é fragmentada e em que o consumo de música (e não só) é um consumo rápido, há um número muito maior de artistas a lutar pela nossa atenção passando facilmente grandes artistas ao lado não por não lhe ter sido dada uma oportunidade, mas por termos tido tempo para a dar. Eu pelo menos sinto por vezes que há tanta nova música e novos artistas que é quase impossível ouvi-los e dar uma oportunidade a todos. De repente a pessoa que encara a música apenas como um hobby compete pela mesma atenção, e com as mesmas ferramentas, de quem ambiciona ter uma carreira em música.

E no que toca a vendas de música, os artistas continuam a ser mal pagos – tirando talvez ao vivo, sitio onde acho que ainda existe possibilidades – simplesmente nomes como a Universal, Sony, etc. foram substituídos por Apple, Google, Beatport, Spotify.

O avanço na tecnologia e a massificação de interfaces áudio e softwares de gravação áudio deram-nos meios. A democratização da música através do digital deu-nos o acesso. Mas a massificação e a quebra de certas barreiras encheram o espaço musical e criaram uma entropia que nos tirou valor. A lei do mais forte (ou do mais talentoso/trabalhador) perdeu força e hoje, ironicamente como antigamente, pode ser um caso de sorte triunfar.