Carne e Queda
É possível que a princípio o sacrifício simbolizasse a queda por um alimento animal, a expiação da morte da primeira rês; por qualquer circunstância, o homem, primitivamente frugívoro, teria sido obrigado a alimentar-se com a carne de animais, até aí sagrados para ele; abatera o primeiro e logo sentira todo o horror do seu crime: matara um companheiro, um amigo, e o seu primeiro movimento foi de fuga; depois, para que os deuses lhe perdoassem, fazia-os tomar parte no festim. O rito estranho das Bufónias, antiquíssimo, reproduzia com pormenorização a cena primitiva: havia a fuga do sacrificador, a acusação de todos os que tinham tomado parte na cerimónia; finalmente, a condenação dos instrumentos que tinham servido para cometer o crime
A Pré-História dá-nos o homem caçador, pescador, ao passo que os antropóides são frugívoros, e, factos notáveis, o homem conserva o aparelho digestivo dum frugívoro, nas suas tradições refere-se a um passado de frugívoro, tem uma repugnância instintiva pela carne crua, e, finalmente, grande parte das suas doenças são devidas às toxinas dos alimentos animais. Ainda hoje, apesar das inevitáveis modificações que longos séculos de omnivorismo produziram, existe a possibilidade no homem duma alimentação exclusivmente frugívora, tantos e tantos séculos foram frugívoros os nossos antepassados antropóides!
Havia um homem [o Iniciado Pitágoras], nativo de Samos, que fugira de Samos e dos senhores da ilha por detestar a tirania, preferindo viver voluntariamente no exílio. Com a sua mente espiritual aproximou-se dos deuses, embora muito distantes nas regiões do céu, e percebeu com os olhos do intelecto o que a natureza negava aos olhares do homem comum. […] Foi o primeiro a denunciar o costume de servir carne de animais à mesa, e também o primeiro a pronunciar, com a sua boca sábia, estas palavras: “Abstende-vos, mortais, de contaminar os vossos corpos com alimentos ímpios! Tendes os cereais e as frutas que inclinam os ramos com o seu peso, e os abundantes cachos de uvas nas vinhas, e as verduras saborosas, e nem o leite nem o mel perfumado vos estão vedados. A terra generosa proporciona-vos um sem-fim de fecundos alimentos pacíficos, e oferece-vos banquetes sem necessidade de matança nem de sangue. Só os animais é que saciam a fome com carne, e nem sequer todos. […] Ah, que grande crime é introduzir vísceras nas próprias vísceras, e engordar o corpo insaciável enchendo-o com outro corpo, e que um ser vivo viva da morte doutro ser vivo. […] Mas um primeiro instigador funesto, não sei quem, sentiu inveja da comida dos leões e sepultou no seu ventre ávido alimentos corpóreos, abrindo o caminho para o crime.(Ovídio, Metamorfoses, livro XV)