Daqui Ali – Texto Seis [Como Eu Pensei Que Ia Ser Esfaqueado]
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Quando acordei, naquela manhã de segunda-feira, não tinha muito na cabeça. Estava meio cansadito porque ainda não tinha recuperado a cem por cento da noite de sábado… por mais porreiro que tenha sido ter apanhado a bebedeira num bar-carrinha (daquelas pão-de-forma), que a dada altura decide mudar de sítio (e lá vai o pessoal com as bebiditas atrás) em Bangkok, até às sete da manhã, em amenas cavaqueiras com malta de um pouco de todo o lado, e ali mesmo ao lado daquelas ladyboys que deixam um gajo embasbacado com… bem como é que um gajo pode ser tão boa? Por mais fixe que tenha sido experimentar a noite tailandesa, que não pára, com os seus bares de rua e restaurantes de passeio cheios de actividade até tão tarde que volta a ser cedo… por mais fixe que tenha sido tudo isto, sai do corpo, e do figadozito, sempre disposto a levar uma pela equipa…
Por isso mesmo, não tinha muitas ideias em relação ao dia. Ok, tinha de ir até “àquele sítio” procurar por um autocarro que me levasse a Ko Pha Ngan, onde deliriaria com a mítica Full Moon Party. Por estas e por outras, nunca me tinha passado pela cabeça que nesse mesmo dia ia temer pela minha VIDA tuguinha! Mas assim foi…
Metro aqui, metro ali, caminhada com os nossos quilos de bagagem para ali, comprámos os bilhetes. 600 baht, ok, porreiro – afinal não eram os 800 ou 900baht que os gulosos das agências os queriam impingir.
– Agora temos de matar algum tempo… ‘bora dar mais uma vistita de olhos… – disse à Sofia.
– E ‘bora lá ver se encontramos um maluco qualquer que nos queira dar uma facada! – foi o que ela NÃO disse, mas que até podia ter dito…
Comemos qualquer cena e fomos ver aquele templo budista ali já ao lado. Entretanto começa a chover e um gajo tem se abrigar ali debaixo de um oleado. Pois estamos ali nós na nossa, quando eu ouço duas asiáticas (de sotaque americano) a falar de uma volta que vão dar numa tuk tuk (daqueles táxis-mota de três rodas) por um preço muito fixe. Eu ouço aquilo assim meio de lado, e sinto que tenho de dizer alguma coisa…
– Olhem, desculpem lá mas ‘tava a ouvir a vossa conversa. E aconselho-vos a não ir.
– Porquê?
– Porque é barato e tal, mas ele depois só vos leva a um sítio mesmo de interesse e o resto é lojas onde ele ganha cupõezinhos de combustível por levar turistas. E vocês andam ali uma hora ou duas a fingir que querem comprar cenas… – lá disse eu, contente por estar a fazer o que eu gostava que alguém tivesse feito comigo. Entretanto apareceram dois chineses que elas já conheciam, mais dois putos tailandeses que a cota tinha acabado de conhecer (era muito sociável, ela). Ali estávamos todos abrigados debaixo do oleado quando aparece o Chuck Norris de Bangkok. Ele diz qualquer coisa, elas dizem que já não querem ir na voltinha, e o gajo pergunta porquê. “Porque está a chover”, respondem elas, e muito bem. Mas o gajo já não é novo nisto.
– Did you say something? – pergunta-me ele, já com cara de “pronto, vou ter de matar alguém”.
– I said many things, we were talking…
– Why?
– Because I have a mouth, and we talk, we say things… – respondi. Pá isto até dá a entender que eu estou a pedi-las, eu sei, mas eu disse na boa, sem grande cena, sem grande cara de “ai ui que eu aviso os turistas todos!” Mas essa carinha laroca não chega. O gajo olha para mim com uma expressão que, em si, já me magoava (lá fundo, no coração), afasta-se um bocado, aponta, diz “outside”, algo com a palavra “die” (ouviu a Sofia esta parte) e caminha. “Heia foda-se, já vou andar aí duas semanas com dois olhos pisados…”, foi o que pensei, juro. Ia dar luta, mas o gajo tinha cara de quem já anda nisto há uns tempos, por isso o mais certo era eu ficar meio torto depois daquele encontro. Pois muito me enganava. Não é que olho lá para fora (o gajo era um rufia respeitoso e não queria matar ninguém num templo, então estava a fazer-me uma espera) e vejo o gajo com uma faca. Aquela lâminazinha de meio palmo ora a apontar para mim, ora a dançar violentamente, enquanto o gajo ensaiava, com gestos exagerados, a sua forma mais eficaz de me matar. Aqui passei-me um bocado. “Foda-se não queria nada ser esfaqueado agora…”, foi o que me passou. Tinha acabado de comer e tudo. Estava a chover. Aquilo dava p’ra tudo, menos p’ra levar uma naifada. E tinha de apanhar o autocarro dali a um bocado, e não queria ir cheio de sangue!
Mantive a calma (nas acções e pensamentos, porque o meu coração batia acelarado e a minha adrenalina pensava que era o Natal das Hormonas), tirei os chinelinhos (caso precisasse de correr), meti-os na mochila, e comecei a pensar. As gajas estavam-se a passar, os chineses estavam sem expressão e os tailandeses, sendo locais, estavam com tanta vontade de ali estar como de… bem, como de levar uma facada! Pedi aos putos para ligarem à polícia, os gajos afastaram-se e assim o fizeram. Queriam era pôr-se a andar dali o mais rápido possível. Eu não faria o mesmo, mas entendo. São dali, nós não.
Entretanto, não contente, o gajo volta. “Foda-se, cagou para o Buda e vai-me matar aqui mesmo…”. Aproxima-se.
– Queres ir numa viagem tu? – pergunta-me – Para ti só um baht! – diz. Na altura só pensei no gajo do Auto da Barca do Inferno, que estupidez! Não há um gajo no barco que leva os espíritos para o outro lado? Este gajo queria levar só um baht por isso, não ‘tá mal. Outra cena engraçada que me veio à cabeça, foi escolher o sítio em que levaria a facada. Ia tentar resistir e tudo, mas só não queria que o gajo me fodesse o fígado. O meu já não vai em grande forma, é verdade, mas seja o meu seja o do Dalai Lama, que eu saiba nenhum resiste a uma facada. Não podia ser pá, não me podia mandar no fígado.
– Não, não, obrigado, respondi… – e depois o gajo faz a mesma pergunta à Sofia. Not cool. Para nenhum de nós. Porque se dantes pensara em fugir, agora não podia, porque ele também tinha os seus olhos na tuguita e eu nunca a ia deixar sozinha. Claro que ela também respondeu que não estava muito interessada na viagem, por mais promissora que soasse (esta última parte estou a acrescentar agora). Antes de bazar o gajo ainda perguntou de onde é que eu era. “De Espanha”, respondi, envergando a minha camisola da selecção em que ele deixou o olhar por uns quatro segundos. Quando ele dá a volta, dá uma lapada no seu próprio cu, não para dançar ou nos seduzir, mas só para nos mostrar, mais de perto, a sua faca. Méne aquela lâminha!
Saiu de novo e lá ficou à espera.
Entretanto aparece um gajo qualquer com um uniforme. Os putos explicam-lhe a cena, mas ele, não vendo o magarefe, acho que não estava numa de nos levar a sério, e sorriu. Um gajo fico ali, debaixo do oleadito, sem saber o que fazer, e o gajo esparracha-se lá numa cadeira, dizendo para irmos embora.
Não sei se o Facas o viu ou se ainda lá estava e não nos viu, mas nós caminhámos na direcção oposta, saímos do templo, caminhámos mais um bocado e depois eu e a Sofia metemo-nos por uma rua qualquer numa corridinha cheia de paranóia. É que parecia-me que toda a gente estava metida com o gajo! Incrível como funciona o nosso estado alerta. Quando finalmente chegámos à nossa rua, eu ainda olava para trás a cada quatro passadas…
Esta cena foi potente, muito potente. Ironizei bastante mas isso não retira a seriedade que teve. Naquele momento acredito plenamente que o gajo estivesse doido o suficiente para fazer uma merda assim. Nunca me tinha sentido tão ameaçado como naquele momento. Mas contado, com ou sem ironia, já percebi que nunca é aquela cena, porque não dá, sejamos nós uns Antónios Pedros ou uns Saramagos, para explicar de forma infalível um sentimento… E tudo porque o gajo perdeu os voucherzinhos de gasolina, se calhar p’rai de um ou dois euros. Que era o que a minha VIDA talvez valesse para ele…
PS – Só agora é que percebi que escrevi em português quando o gajo me interpelou pela segunda vez. Só queria deixar claro que o gajo não teve tempo de aprender português entre a primeira vez que falou comigo e a segunda, eu é que troquei agora as línguas.