De Schoenberg a Peter Brötzmann

Arnold Schoenberg, auto-retrato

Se [a minha música] é arte, não é para todos, e se é para todos, não é arte.

 

Não gosto muito de Schoenberg. Não costumo ouvir recitativos nem canto lírico, as composições dele para piano parecem-me, na sua maioria, aborrecidas, e muitas das suas afirmações são de uma arrogância insuportável. Mas falar da arte do século XX e ignorar Schoenberg é a mesma coisa que escrever uma história do rock sem mencionar os Beatles.
Na última segunda-feira, resumi 80 anos de música num parágrafo. É óbvio que tive de omitir demasiadas coisas, incluindo a abordagem de alguns compositores à dissonância. Para explicar as mudanças no fim do século XIX, acho importante entrar um bocado no mundo da teoria musical (os menos conhecedores que não se preocupem porque eu também não percebo grande coisa disso).
As escalas mais usadas na música ocidental já são conhecidas desde os tempos de Platão. Apesar de as escalas pitagóricas terem sido abandonadas em favor das escalas bem-temperadas, os princípios mais comuns mantêm-se: escalas de 7 tons (diatónicas) ou de 5 (pentatónicas), que terminem sempre na nota inicial, mas uma oitava acima. Os intervalos de oitavas, quintas e quartas costumam soar-nos bem porque possuem proporções matemáticas simples – um Dó uma oitava acima de outro Dó produz uma onda sonora que vibra exactamente ao dobro da velocidade, sendo então a proporção de 2:1. Os famosos “power chords” são tão usados no rock porque dão mais força à nota fundamental, acrescentando apenas um intervalo de oitava (2:1, portanto) e uma quinta (3:2). São “seguros”, de certa forma. Quando as notas são tocadas em simultâneo, é fácil ver se nos soa bem ou mal: é imediato. Quando temos escalas, já entra à mistura a nossa memória a curto prazo e a insistência do cérebro em fazer previsões. Ouvimos duas ou três notas, e inconscientemente pensamos logo quais poderão ser as próximas. Em termos muiiiito resumidos, se a nota seguinte não nos parece fazer sentido, é bem possível que seja dissonante. Gostamos de ser surpreendidos pela música, mas toda a gente tem um limite. Há quem argumente que as proporções matemáticas complexas dos acordes dissonantes não interessam para nada, e que a dissonância não passa de um fenómeno cultural. Não vamos entrar por aí, porque isso dava para outros dois meses de posts, mas fica aqui a ideia.
Parece-me que foi essa a “crise” após a morte de Beethoven: muitos compositores começaram a pensar no futuro da música, e concluíram que a música “consonante” estava a atingir o seu ponto de saturação (ainda mais depois de Wagner). As diferenças entre a música francesa e alemã vão ficar para a próxima semana, mas aqui fica um ponto em comum: tanto Debussy como Strauss começaram a usar intervalos inesperados, como subir ou descer apenas meio-tom, tornando a música ambígua, difícil de prever. Há quem diga que o segredo do heavy metal está nos meios-tons, e não é assim tão descabido. Ouçam as primeiras notas de guitarra do primeiro álbum de uma das primeiras bandas de metal: a “Black Sabbath”, dos Black Sabbath. Primeiro temos o power chord, depois soa apenas a oitava… e a nota seguinte, em vez de ser a quinta que já ouvimos no acorde, é uma quinta diminuta, meio-tom abaixo, com hammer-ons repetidos na quinta perfeita. Mostram-nos a nota que queríamos ouvir, mas recusam-se a fazê-la soar. Queremos saber como se vai resolver a tensão na música, mas temos de esperar até aos dois minutos finais, e mesmo aí a voz do Ozzy continua a passar por essas notas. Mas os Black Sabbath acabam por ser simpáticos, e no fim da música dissipam a tensão. Nem todos os compositores têm essa consideração por nós.
E é aí que entra o autodidacta Schoenberg. Schoenberg sabia perfeitamente que uma nota nos soa dissonante quando não está dentro das nossas previsões, criadas com base nas notas fundamentais da música – com base na sua tonalidade. Como tal, ele decidiu ir ainda mais longe: se a música não tiver um centro tonal, não podemos prever nada. Scriabin, na Rússia, já tinha usado acordes atonais, e Liszt já tinha tentado fugir de um centro tonal claro em 1885, mas nenhum deles compôs durante anos com a atonalidade em mente, nem originou uma nova escola de pensamento. Com Schoenberg começamos a entrar num tipo de música provocatório, que foge da tonalidade quando pensamos estar a começar a percebê-la.
No entanto, o compositor rejeitava o termo “atonalidade”, preferindo “pantonalidade”. Acreditava que a música dele não era independente da tonalidade: era antes a tonalidade elevada ao máximo das suas potencialidades. E isso explica o próximo passo da chamada Segunda Escola de Viena: se não há uma tonalidade “pura”, nenhuma nota tem mais peso do que as outras. Então, para “democratizarmos” totalmente a música, temos de percorrer os 12 tons da escala cromática sem regressar mais vezes a uns do que a outros. Schoenberg terá sido influenciado por uma composição de outro compositor, Josef Matthias Hauer, e levou este princípio demasiado longe, na opinião de muitos (e aqui me incluo). Para criar ordem no atonalismo, as séries de 12 tons são repetidas, sendo primeiro apresentada, depois invertida, depois transposta, e depois invertida a transposição. A fuga às regras da tonalidade levou à criação de um estilo ainda mais rígido, embora não imediatamente perceptível através da audição.
Mas não deixa de ser interessante constatar que este tipo de música tenha sido fortemente divulgado, tanto no período das Guerras Mundiais como depois delas. Vejo ainda alguma influência dela no rigor de algumas composições minimalistas (de Philip Glass, por exemplo), mas também em outro género musical, a partir da década de 50 ou 60. O free jazz demonstrou que as ideias de um género tipicamente elitista também podiam ser aplicadas à música das massas, e de forma mais “honesta”: não só com liberdade rítmica, mas também com uma liberdade total de improviso, saltando de passagens atonais para tonais, passando até frequentemente por microtons nos instrumentos de sopro. Passou a ser um género completamente distinto, a unir o melhor da música clássica e da popular, a ser tocado em salas de espectáculos e nas ruas, a ser apreciado por ricos e pobres. Tanto quanto sei, não caiu nas tentações do dodecafonismo (aliás, não conheço nenhuma banda que o faça) e, mesmo quando falamos de compositores como John Zorn, estamos a pensar em música extremamente complexa e pensada, mas que consegue soar primitiva, tribal… humana. A atonalidade pensada e a atonalidade sentida são duas faces da mesma moeda.

http://youtu.be/lmUzydxDCVA

Por hoje é tudo. Como não gosto muito de textos demasiado extensos, o próximo será mais curto. Até lá, fiquem com algumas sugestões para esta semana:

Liszt – Bagatelle sans tonalité (1885)

Alexander Scriabin – Prometheus (1910)

Schoenberg – 3 Klavierstütcke (1909)

Schoenberg – Suite for piano, op. 25 (1923)

Webern – Klavierstück (1924)

 

Na próxima semana: De Stravinsky a Meshuggah