Everything's Bigger in Texas V – The East Side

Tenho a barriga a andar às voltas, quase à mesma velocidade a que o meu cérebro rodopia dentro da minha cabeça. São 1:28 da manhã aqui em Austin, Texas, e encontro-me sentado na minha nova secretária, a olhar pela janela para uma noite tão escura que nem a vejo, enquanto a minha vizinhança dorme, sossegada. Até quase me sinto mal por ter a luz ligada, como se estivesse a perturbar alguém mais do que os gatos vadios (mas curiosamente adoptados pela comunidade, que os leva ao veterinário e lhe põe coleiras de cores garridas) que de vez em quando param aqui à minha janela, e me prescrutam com grandes e reluzentes olhares âmbares. Sinto as minhas “shoulder blades” (aprendi esta hoje, não sabia dizer omoplatas em inglês – a verdade é que o nome é “scapula”) completamente descoladas do meu corpo, e estou a sensação de que os meus braços vão cair ao chão, mal tire as mãos de cima do teclado. Estou mesmo cansado, como já não estava há uns tempos.

Morei durante os últimos sete meses numa zona chamada “West Campus”. Perfeitamente localizada, no centro de toda a acção em termos de “sítios para comer”, “sítios para visitar”, mas, acima de tudo, a 3 minutos a pé (aqui ando sempre de bicicleta de um lado para o outro) do edifício da Universidade onde tinha de ir praticamente todos os dias, e a 7 do ponto mais central de todo o campus, tinha um contrato de sub-leasing com uma rapariga que foi passar um semestre à Europa (e como tinha de arranjar um novo inquilino ou então continuar a pagar a renda na totalidade, comprometeu-se a pagar praticamente metade da renda, sendo que de outra forma eu nunca na vida teria dinheiro para ficar numa localização tão espectacular), e acabei por partilhar um apartamento com cinco raparigas que faziam parte de uma sorority. O pensamento inicial é sempre o mesmo: todos os meus amigos me chamavam “sortudo”. Mas, sinceramente, à parte do facto positivo de o apartamento cheirar sempre muito bem, o West Campus é sinónimo de “party central”, e, sinceramente, é mesmo preciso ser-se um bocado mais novo, e andar na Faculdade cá, para se aproveitar o full potential de viver num sítio como aquele – é lá que mora a maior percentagem de estudantes de uma Universidade que tem um pouco mais de 50.000, e se bem que o ambiente de “vila universitária” transmite uma segurança confortável e um espírito de constante sorriso no rosto, dormir e trabalhar são coisas que alguns de nós também gostam de fazer, e (in)felizmente nem todos podemos passar noites em claro a jogar beer pong em insufláveis com luzes de Natal, na piscina.

Mudei-me ontem, depois de seis cargas de uma pickup, para o East Side da cidade. Austin é uma cidade como todas as outras, apesar da sua forte influência universitária – existe o campus e downtown, ao centro; existem os neighborhoods de dormitórios de estudantes, a Oeste; a indústria e os grandes centros comerciais, a Norte; a zona hip e para turistas verem, a Sul (a chamada SoCo, South Congress Ave.); e, obviamente, uma auto-estrada (daquelas grandes, mesmo à Texas), a cortar o acesso ao Este, onde moram todas as minorias – todos os hispânicos, os imigrantes legais, mais ou menos legais e os ilegais, todos os grupos étnicos que se demarcam do típico “americano”. O “East Side” é, portanto, visto como o lado inseguro da cidade, “onde os problemas acontecem”, onde se fala (muito) mais espanhol do que inglês.

Nunca tentei contrapôr as pessoas que me contavam histórias mirabolantes que reforçavam o quão perigoso é “aquele” lado da cidade. Sempre preferi guardar para mim as histórias dos longos passeios que dava por lá, entre os jardins mais bonitos e bem cuidados da cidade, perto do lago, onde costumo ir com amigos “to throw the ball” (um vício bem americano, ao qual me habituei rapidamente). Nunca tentei discutir com quem me dizia que não devia olhar as pessoas “de lá” nos olhos. Sempre preferi conversar com “essas pessoas” num espanhol arranhado, mas num esforço de comunicação que sempre valeu a pena, porque “lá” as pessoas esforçavam-se por entender, mesmo que a mistura de spanglish com Português fosse melhor que sequer tentar falar em Inglês directo.

E agora moro aqui. Numa pequenina, mas amorosa, casa, com três quartos. Mudei-me com duas amigas, a renda é metade do que paguei até agora, e, sinceramente, nunca me senti tão seguro e em paz como agora. Estou agora a 10 minutos de tudo o que quero (benditas bike lanes), e, ao mesmo tempo, longe de tudo o que não quero. Sinto também que este ar puro, não-violado, e transportador de aromas dos longos campos de flores que crescem junto ao lago, traz também inspiração e criatividade. Ainda estou rodeado de caixas e caixas e caixas de coisas para desempacotar, e ainda estou muito longe de poder chamar a este sítio “habitação” (se bem que “casa” já consigo), mas a minha vontade neste momento é de pegar na guitarra que comprei no Craigslist há umas semanas, e começar a fazer música outra vez, rapidamente; ou pegar numa câmara e fazer um filme em stop motion; ou o que quer que seja, na verdade… Sinto é que quero fazer coisas. Uma liberdade que já há muito não sentia, muito provavelmente por ter passado demasiado tempo a viver num sítio em que “liberdade” tem um só, e limitado, significado.

Já é tardíssimo, e escrevo-vos no intervalo de tentar completar o “project report” para a minha tese de Mestrado, que é “due” amanhã… E ainda estou um pouco longe de terminar.

Em rotação constante está o novo álbum do John Frusciante, Letur-Lefr. Praticamente 16 minutos de uma viagem estranha, que, apesar de ser conduzida por um dos meus músicos favoritos de sempre, ainda não sei se posso declarar abertamente se “gosto” ou não. É, sem dúvida nenhuma, interessante – e vale todo o tempo que estive à espera de receber a minha pre-order – assim como já está completamente entranhado na minha cabeça, e já o sei de cor… Mas ainda não consigo ter uma noção clara do seu objectivo, se é que há algum. As guitarras, ainda que não relegadas para um segundo plano, passeiam de mão dada com os sintetizadores e com o uso de vozes e vocalizações inesperadas, numa frenética mudança de tempo constante, aparentemente sem rumo, mas que chega a todo o lado. Ainda estou confuso, mas não consigo deixar de sorrir sempre que penso que o Frusciante se referiu a este novo projecto como “[I consider my music to be] Progressive Synth Pop, which says nothing about what it sounds like, but does describe my basic approach”…

Em cima da caixa do CD tenho um envelope com quatro bilhetes de concertos – dois para Austin e dois para Houston, para dias consecutivos, em Setembro, para a mesma banda. A minha favorita. Os SWANS. Tenho-me agarrado a tudo o que posso (principalmente ao Letur-Lefr e ao facto de ter de me concentrar na tese) para evitar cair na tentação de partilhar o “pecado” de sacar o álbum novo, que sei que já anda a circular, em formato inacabado… E, ainda que tenha feito a pre-order há já muito tempo, na altura da edição do handmade e limitado “We Rose From Your Bed With The Sun In Our Heads”, sinto que o prazer de esperar até dia 28 de Agosto vai valer a pena, para ouvir o The Seer… A avaliar pelas malhas acústicas que o senhor Michael Gira demonstra no tal CD caseiro, tenho muito pelo que esperar!

A minha barriga continua às voltas (possivelmente pelas quantidades avassaladoras de café que estou a ingerir, tendo em conta que não bebia café há, literalmente, anos), e a minha cabeça continua a pulsar. Sinto que não vou conseguir adormecer anytime soon, se bem que amanhã tenho de estar no trabalho antes das nove, e ainda não investiguei muito acerca dos transportes públicos desde a minha casa nova até ao estúdio. Sinto uma letargia estranha, porque é infundida de uma saudade de casa e uma vontade de não fazer nada, ao mesmo tempo que quero ter tudo feito. Se calhar são as caixas à minha volta; se calhar é a guitarra, parada, encostada à parede do quarto; se calhar é o cansaço de ter transportado inúmeras caixas cheias de DVDs que ainda não vi, livros que ainda não li, vinis que ouço em rotação constante. Se calhar é só sono. Se calhar é esta vontade pulsante de saber tudo, a toda a hora, de estar em todo o lado, a todo o momento. Ou se calhar é só o East Side, e aquele efeito sobre o qual toda a gente tem preconceitos, mas que afecta quem cá mora de uma forma diferente, relembrando-nos que estar apaixonado pela Vida significa um pouco mais do que vê-la a passar. Significa, por exemplo, fazer um álbum de progressive synth pop!

http://www.youtube.com/watch?v=6LtmMvWqWk4