Quando há um ano atrás, aproximadamente, me envolvi numa troca de argumentos cibernéticos com o autor deste blog sobre a categorização musical vigente, estava longe de imaginar que iria discorrer livremente algumas palavras a convite do mesmo. O tema era quente e fazia total sentido pela ambigenia e voracidade de como se consome e digere música nos dias que correm. Volvidos alguns meses e depois de uma longa reflexão sobre o assunto, decidi desenvolver essa mesma narrativa que servirá como ponto introdutório desta agenda a cinco movimentos com a Amplificasom, que me predispus cumprir.

Afinal fará ou não sentido, etiquetar a música que se ouve e a legitimidade do seu termo? Os arquivistas musicais dirão que sim, alguns músicos e melómanos alinharão no não. A velha questão dos rótulos aplicados ao domínio musical será sempre uma bifurcação entre os seus agentes e uma pegada sensível nas ciências musicais. Antes de mais, dizer que este é um dilema secular que acompanhará sempre a documentação histórica que se confunde mormente com a antropologia e com a dualidade do Homem/Som. Não existirá data de recolha com fim à vista. Por isso e como não sou nenhum Aristóxenes, ficar-me-ei sucintamente pela segunda metade do século XX onde me sinto mais confortável. A cultura dessa época indica-nos que os géneros, movimentos e correntes traçaram, genericamente, a cronologia popular até aos dias de hoje. Foram a base da pirâmide que permitiu que chegassem ao topo, todos os visionários e pioneiros que consideramos as referências de excepcionalidade dentro da norma. A coalescência canibal que se seguiu a partir daí, foi apenas o efeito colateral criativo que originou o passo à frente do modelo. A imprevisibilidade da consequência natural. A capacidade emancipadora do acto criativo, na dianteira do seu próprio tempo. É disto que falamos, em suma: réplicas, excepções, mecânicas e rejeições. É difícil imaginar o Jimi Hendrix e o furacão naquelas seis cordas sem a contracultura hippie dos anos sessenta. No entanto, é consensual e inegável que ele se transformou numa figura incomparável e distinta daquela condicionante comunhão. Passado tanto tempo, o psicadelismo não comeu o Hendrix mas o contrário já não é assim tão improvável. Por outro lado, os Beach Boys ficaram incontornavelmente ligados a um espaço e a uma época que os definiu como “surf rock”, símbolos de uma juventude “carpe diem” e de uma geração baby boomer pacificada. Actualmente, é inegável que eles foram bem mais do que isso, ostentando uma pop que se situa a montante da pop (e.g. “Pet Sounds”). Os Black Sabbath apareceram como a banda-sonora de filmes de terror, uma alternativa draconiana ao hard rock setentero que se mexia pelas margens do progressivo e do psicadélico que soçobrava. Em 2014, é estranho vê-los associados ao doom, proto-doom ou colagens contemporâneas. Em 2014, talvez nem eles próprios concebam, de cara séria, a sua música como doom-metal contextualizado nessa data, como uma série de descendentes o fazem presentemente. Já para não falar dos Velvet Underground, uma quadrilha de antissociais ameaçadores e presunçosos, completamente ignorados pelos seus pares e que hoje são considerados percursores do shoegaze, do art-rock, do avant-garde, etc.

Quando o jornalista inglês Jon Savage, no término dos anos setenta, cunhou a designação “post-punk” e “New Musick” para uma série de bandas britânicas e americanas desalinhadas da regra e esquadro punk, era fácil de se constatar que os “monges copistas” da altura estavam completamente alheados do que se estava a passar. Arrebatados pelo contraste dentro da prossecução da fórmula, epilogaram uma ambiguidade incorporada no prefixo “pós” para assegurar a continuação da espécie. Tentem agora encaixar os Magazine, os Television, os Talking Heads, os Bauhaus, os Fall, a Siouxsie e os Devo, todos no mesmo puzzle. No entendimento volátil que era o pós-punk. À luz dos acontecimentos desse reboliço, podemos agora destrinçar mais sub-categorias como o gótico, o new wave, o glam que ainda algo abstratas e redutoras, concedem uma maior identificação ao campo de actuação de cada um. Não é uma discussão pacífica, nunca o será. Mas é a contrapartida da partilha de informação e do não-isolamento numa ilha. É a consequência da universalidade da obra e da sua reacção. Em certas circunstâncias, essa estratégia foi usada de uma forma transgressora e reverberada. Pouco tempo depois e na cena underground nova-iorquina, aparece uma nova bandeira chamada “no wave” que se opunha à comercialização do seus “primos” musicais, como um jogo de palavras satírico a responder a essa etiquetação da música. Destacaram-se dentro desse grupo nomes como Glenn Branca, James Chance, Teenage Jesus and the Jerks que inspiraram tipos como os Swans, Elliott Sharp, Lydia Lunch ou os Sonic Youth a regar essa semente até brotar o noise… que daria lugar ao indie… que resultaria no grunge. Assim, sucessivamente.

Este truque engenhoso do “pós-qualquer-coisa” foi reutilizado com o rock, com o hardcore, com o metal, pelas mesmas razões e finalidades. Em 1994 e na ressaca dos Bark Psychosis, Tortoise, Cul de Sac, Stereolab, o crítico Simon Reynolds usou o termo post rock para descrever uma música “usando instrumentação rock para fins contrários ao género, usando guitarras como facilitadores de timbre e texturas ao invés de riffs e acordes”. O quão vago e libertador pode isto parecer? Por outro prisma, após a consagração do Iggy Pop como um monstro do rock e de levarmos com a descarga de electricidade dos MC5, avançamos, dedutivamente, para uma retaguarda do proto-rock. Não porque tivessem consciência disso quando resolveram destruir palcos, mas porque faria sentido perante a ordenação dos seus lugares na história da música popular. Retornando aos anos setenta, só muito recentemente é que se clarificou toda a árvore genealógica do prog rock que parecia uniformizada e visível. Das mais recentes descobertas aos estudos que se seguiram, caracterizou-se uma matriz própria para cada grupo ou até nação que se apoderou do género. Desse núcleo original, por exemplo, artistas contemporâneos partilham o adjectivo com novos cruzamentos sonoros, continuando progressivamente coerentes ao tema. Os casos multiplicam-se ao longo da história. No entanto, é bastante injusto ilibar os músicos dessa mesma responsabilidade pois, invariavelmente, são protagonistas dessa mutação e excesso de branding. Aliás, esses rótulos consolidam-se porque as bandas existem, refugiam-se nesse campo restrito e contribuem para o seu desgaste. É praticamente impossível evitar por entre pingos da chuva, a aproximação deliberada ou ocasional a uma destas avenidas sonoras. O que é novo, diferencia-nos e o que diferencia, atrai. Porém, numa Era em que já se fez tanta e tanta coisa, quando já se descobriram minas de ouro e se desgastaram equações musicais, qual será o carácter inovador integralmente autêntico que restará por patentear? Suspeito que pouca coisa. Desconfio do interesse estético relevante na ideia de diluição, do mesmo modo que receio que o futuro próximo se torne numa espiral autofágica de signos musicais entediantes. O que emergirá a seguir do psicadelismo, brevemente, no elevador do underground. O house? O industrial? A power pop?

É engraçado pensar que esta miríade de projectos e esta conjugação de mentes conseguiu, a certa altura, estar um passo à frente de quem indiciava o que se deveria escutar, o mob que se deveria seguir. Este é o grande desafio para quem, do lado de cá, tem por hábito interpretar a visão de quem olha para uma pauta em branco. Justificar o cânone para respeitar a singularidade. Valorizar a surpresa, explorando o quotidiano. É assim que se vai executando o papel das ciências sociais e, em última análise, do jornalismo musical. A mediação entre uma linguagem ou objecto artístico na sua transição para o grande público e a gestão do seu valor imaterial. No seu devir sociológico. Que se me permitem, nunca fez tanto sentido como agora. Sim, aquilo que ouvimos – ontem, hoje e amanhã – diz-nos muito mais sobre nós e o nosso tempo, do que profecias e leituras estanques.

Manuel A. Fernandes escreve de acordo com a antiga ortografia.