"Hi, this is Ricardo from Loud!"
JK FLESH
Humano, Demasiado Humano
Pioneiro, visionário, resiliente ou revolucionário. Qualificativos adequados a Justin K. Broadrick, nativo de Birmingham cujo nome é quase sinónimo de Godflesh. Mas igualmente de Jesu, Final, Pale Sketcher, Techno Animal ou agora também, JK Flesh. Adoptando como mote este seu mais recente projecto, a Loud! conversou com Justin, que nos revela com como a vida e a música são, no fundo, sinónimos para si.
Por Ricardo S. Amorim
Consigo ouvir o teu filho pelo telefone. Como tem sido a experiência de ser pai?
Nunca imaginei como seria. Por um lado, é algo maravilhoso, mas também é uma prova constante, exigente e difícil. Muda toda a perspectiva que temos da vida e aprendo coisas novas todos os dias sobre o meu filho, a mãe dele e sobre mim próprio, também.
Sendo algo com um efeito tão profundo, em que medida achas que te afectou enquanto Artista?
Inicialmente, quando ele nasceu, não fiz música durante alguns meses mas houve um projecto para o qual tinha um deadline que depois tive de fazer. Estava a passar por um turbilhão emocional muito grande e depois tive de mergulhar na música, porque era algo que tinha de fazer. Passei de alguns meses a não fazer nada a ter de voltar a fazer muita coisa para libertar todas as emoções que vivi naquele período. Sem dúvida que me afectou muito mas não mudou assim tanto. Por um lado, vejo a vida como algo de muito mais precioso mas, filosoficamente, tudo se mantém como até então. Haveria quem pudesse pensar que ter um filho me fizesse ver alguma luz na raça humana, por oposição à minha habitual visão misantrópica, mas essa visão não mudou, apenas sinto agora que tenho outro nível de responsabilidade na vida. Acho que o primeiro projecto em que trabalhei depois do meu filho nascer foi Pale Sketcher, e uma remix de um projecto de um amigo, chamado Miracle. Envolvi-me de tal maneira que voltei a focar-me muito na música. A música para mim representa a indulgência suprema. Alguma da minha música preferida foi criada assim e sempre me orgulhei de, enquanto criador, de me deixar levar pela indulgência da alma e isso mantém-se intacto. A diferença é que agora tenho de me focar mais e já não posso passar dias atrás de dias no estúdio a tentar fazer as coisas funcionar. Tenho de ser mais rápido, o que também acaba por ser bom, pois no passado trabalhava em coisas durante tanto tempo, a refazer tudo, etc., que perdia imenso tempo. Agora tenho de ser mais decisivo, o que é uma maneira melhor de trabalhar.
No projecto JK Flesh, em que recuperas o pseudónimo usado em Techno Animal, estabeleces algumas pontes entre diferentes aspectos musicais que exploraste em diversos projectos ao longo da tua carreira.
Desde que os Techno Animal deixaram de existir, creio que em 2002, a minha vida deu grandes voltas, tanto a nível pessoal como com o próprio final dos Godflesh. Fui descobrindo, ao longo dos últimos dez anos, que tinha muitas saudades de Techno Animal e algum material deste disco já existe há cerca de oito anos, embora a maior parte seja bastante fresca. Houve um período em que estive muito focado em Jesu mas, em privado e por volta de 2005-6, comecei a trabalhar novamente com beats electrónicos e fui acumulando muito material que sabia que um dia se materializaria neste projecto. Foi só no ano passado que decidi que iria completar este projecto e editá-lo. Como te expliquei há pouco, o nascimento do meu filho deixou-me mais focado e foi muito excitante para mim completar este álbum, que é apenas um início pois JK Flesh é um projecto ao qual me quero dedicar e editar muito material.
Costumas referir que precisas de um balanço criativo, uma espécie de mecanismo de compensação: a um trabalho mais calmo e atmosférico, segue-se outro mais negro e opressivo. Mas desde o fim de Godflesh só voltámos a ouvir um projecto agressivo com Greymachine.
Sim, isso é verdade e há muitas razões para isso. Os Godflesh existiram durante um longo período de tempo, começando ainda na minha adolescência, por isso fez sentido para mim uma pausa depois de tantos anos a fazer música violenta e agressiva. Apesar de achar que a música de Godflesh tem muitas cores, era música muito brutal na sua essência. Com a distância do tempo, hoje consigo perceber porque quis, não escapar disso, mas pelo menos fazer uma pausa. Mas heis que, anos volvidos, cá estou eu novamente a fazer música brutal e carregada de ódio. Preciso disso e precisava dos benefícios da maturidade para atingir um equilíbrio entre diferentes aspectos da minha personalidade. Sou uma pessoa muito dramática e extrema e levou-me muito tempo a perceber quem sou, enquanto ser humano, e a maneira como respondo aos estímulos do quotidiano. A música sempre reflectiu isso: agora que encontrei o meu equilíbrio, a minha música encontrou-o também. Depois de tanto tempo focado em Jesu, o disco de Greymachine foi a primeira coisa brutal e agressiva que fiz em muitos anos, e percebi que precisava também dessa forma de expressão.
A reunião de Godflesh também deve ter tido alguma influência nisso, não?
Absolutamente, sem dúvida que sim. Eu vivo a música e vivo pela música por isso é muito importante para mim ser capaz de exprimir as minhas emoções. A coisa boa da reunião de Godflesh naquela altura foi a de me permitir canalizar toda a raiva e frustração, que no fundo está sempre presente. Jesu é mais o som da resignação, que é algo que continuo a adorar explorar, mas Godflesh é um grito de raiva: têm os mesmos sentimentos subjacentes, mas formas de expressão opostas. Numa altura da minha vida, precisei mais de Jesu, mas Godflesh esteve sempre presente em mim
Sempre tiveste muitos projectos em simultâneo, tendo agora JK Flesh, Jesu, Godflesh ou Pale Sketcher, entre outros. Quando estás a compor, é sempre claro para ti em qual dos projectos se insere a composição em que estás a trabalhar?
Por vezes existe alguma confusão mas geralmente as coisas ficam logo definidas. Adoro o projecto Pale Sketcher, para o qual tenho um monte de material pronto a ser concluído, mas não tenho tido muito tempo livre para isso. As coisas novas são mais beat oriented, quase mesmo dancefloor, mas continuam a ter uma grande carga emocional. Por isso Pale Sketcher está a ficar cada vez menos parecido com Jesu, e Jesu cada vez menos parecido com Pale Sketcher. As coisas têm-se tornado cada vez mais definidas, e é assim que quero que se mantenham. Gosto de me expandir de todas as formas possíveis.
É curioso que menciones essas diferenças e compartimentações em diferentes projectos. Recordo-me que quando o «Hymns» saiu disseste ter considerado que o «Us And Them» teria ido longe de mais. Hoje conseguimos encontrar alguns elementos do «Us And Them» no projecto JK Flesh, não concordas?
Sim, isso é verdade. Esse álbum de Godflesh, «Us And Them», também nasceu a partir de experiências no estúdio. Normalmente, os discos de Godflesh nasciam comigo a escrever riffs no baixo ou na guitarra, ou a partir de um sample de hip hop. O «Us And Them» tem as mesmas raízes mas quase nada desse disco nasceu apenas de riffs, que era o habitual em Godflesh. Esse disco foi muito influenciado pelo que estava a fazer em Techno Animal, ou outras cenas de drum n’bass que fazia na altura. Está documentado que sempre considerei esse disco uma espécie de fracasso, apesar de ter coisas muito boas e exploratórias. Foi bom explorar novos horizontes em Godflesh mas depois tornou-se claro o que deveria estar onde, em termos de diferentes projectos. Mas tens razão, e muita coisa explorada nesse trabalho encontra-se em JK Flesh. Treze anos depois, JK Flesh é uma versão muito mais dramática, extrema e focada daquilo que tentámos fazer nesse álbum.
Olhando agora para a tua carreira musical, mesmo até a partir de Fall Of Because, consideras que tudo faz sentido e é possível ligar os pontos entre os diferentes projectos?
Independentemente das diferentes caras que possa atribuir à minha música, geralmente existem sempre aspectos unificadores. É algo que considero muito importante, e continuo a desafiar-me a mim próprio em diferentes projectos. Faço um disco e passados uns meses já não estou contente com ele, por isso desafio-me a fazer diferente.
Concentremo-nos agora em Godflesh. Sei que há planos para um novo álbum e estás, inclusivamente a compor, certo?
Sim, embora muito, muito lentamente. É engraçado pois ando a dizer a mesma coisa já há cerca de um ano. Estou a escrever e isso vai acontecer, mas vai levar algum tempo. Queremos que seja um disco especial. Será Godflesh puro: minimal, extremamente brutal e muito dissonante. Mas será também um álbum muito focado e forte. Tem de representar a pura essência do que era Godflesh, queremos capturar isso. Parte do encanto que Godflesh sempre teve para mim era o quanto era minimal, e quero recuperar esse espírito mas de uma forma completamente directa, brutal e dissonante. Vai ser um disco muito importante, por isso não quero apressar nada. Algumas bandas, na mesma posição, editariam algo o mais depressa que conseguissem para poderem capitalizar na popularidade da banda, mas preferimos levar o nosso tempo.
E esta popularidade após a reunião, surpreendeu-te?
De certa forma. Se os Godflesh se tivessem mantido em actividade não seriam, nem de longe, tão populares quanto agora. Mas vivemos numa era retro: qualquer coisa que se reúna, é popular. São os tempos em que vivemos. A indústria musical está morta e não há investimento em coisas novas, pois não há dinheiro para se ganhar. Por isso as atenções viram-se para o que já existiu, e somos hoje mais populares que alguma vez fomos. É irónico, mas é um sinal dos tempos e, desde que nos reunimos, tocámos alguns dos melhores concertos da nossa carreira.
Um deles em Portugal, no Amplifest, deixa-me que te diga.
É verdade, gostámos muito de ai estar e foi um excelente concerto. Foi a nossa primeira vez em Portugal. Imagina que foi preciso reunirmo-nos para, finalmente, poder tocar em Portugal.
Outro concerto inesquecível foi no Roadburn de 2011, em que tocaram o «Streetcleaner» e o EP «Tiny Tears» na íntegra. E vão lá voltar em 2013 para tocar o vosso segundo álbum, «Pure». Porquê esta opção?
A coisa estranha do «Pure» é que quando o disco saiu, em 1992, tornou-se imediatamente muito mais popular que o «Streetcleaner». Muita gente não tem essa noção mas era o nosso disco mais popular durante os anos em que estivemos activos, o que não deixa de ser estranho, pois hoje em dia é um pouco menosprezado. Mas, apesar disso, «Streetcleaner» foi o disco que ganhou a reputação e se tornou icónico após a nossa separação, e percebo porquê. Enquanto banda, adoramos o «Pure» e tocar os seus temas ao vivo. O que mais nos deixa excitados por tocá-lo no Roadburn é a oportunidade que temos de o gravar ao vivo, pois nunca ficámos satisfeitos com o som do álbum, e o plano será editar esta actuação como álbum ao vivo, dado termos lá à nossa disposição condições tão boas. Esperamos tocar bem e editar o «Pure» com o som que sempre imaginámos. Também existe um excelente registo da performance do «Streetcleaner» e pode ser que também editemos isso. Temos uma série de problemas a resolver com a Earache antes de isso poder acontecer, mas vamos ver como é que corre.
Nestes concertos têm tocado apenas material mais antigo, até ao «Selfless» com o tema «Crush My Soul». Não planeiam voltar a tocar nada dos discos seguintes?
O nosso material preferido é até ao «Selfless», incluindo esse disco também. Mas temos falado em tocar um tema ou outro dos álbuns mais recentes, embora os temas do «Hymns» tenham sido compostos com o Ted Parsons na bateria e só queremos tocar com máquina. Adoramos alguns dos temas desse disco mas foram compostos para ter bateria. Uma das coisas que queremos, com estes concertos, é honrar o espírito original de Godflesh, na forma em que foi originalmente concebido. Nós os dois e a máquina, é assim que deve ser, isso é que é Godflesh puro.