"Hi, this is Ricardo from Loud!"

Imbuído do espírito de luta que nos levou à rua no passado dia 15 de Setembro, e promete manter, nada como recordar a entrevista a Mark “Barney” Greenway dos seminais Napalm Death.
Além desta banda ser um pilar na minha formação musical, tendo já perdido a conta às vezes que os vi ao vivo, esta entrevista tem também um significado especial para a Loud!, por ter sido o artigo de capa da primeira edição da segunda vida da revista.
A banda certa para o momento que se vive.

NAPALM DEATH
PRINCÍPIOS DA UTILIDADE

Por Ricardo S. Amorim

Progenitores da harmónica corrupção, prisioneiros da liberdade e denunciantes permanentes, os Napalm Death são como uma sólida rocha, capaz de abrir o casco de qualquer navio, sendo essa solidez e inteligência que os mantém relevantes 25 anos depois de «Scum». Dias antes da edição do seu novo trabalho, «Utilitarian», o seu eloquente e comunicativo vocalista Mark “Barney” Greenway teve uma interessante conversa com a Loud!.

Este é já o vosso quarto álbum para a Century Media, numa fase de grande produtividade para a banda. Como olhas para este período dos Napalm Death?
De alguma forma, é um pouco estranho. Olhando para trás, lembro-me do período antes da Century Media, que não foi nada fácil e as coisas pareciam estranhas. Quando fizemos o «Enemies Of The Music Business», isso foi uma fase crucial para nós. As coisas ainda não estavam nos seus devidos sítios e tudo parecia incerto, mas desde que apareceu a Century Media que as coisas melhoraram pois apoiam-nos muito e percebem perfeitamente o que são os Napalm Death, no que à sua essência diz respeito. E quando sabemos que temos pessoas que nos apoiam, tudo se torna mais fácil.

E isso reflecte-se apenas na gestão da banda ou também torna o processo criativo mais fácil?
Eles apoiaram-nos desde o início e é natural que tenhamos aproveitado esse espírito positivo. Quando começámos a trabalhar no «The Code Is Red… Long Live The Code» sentimo-nos elevados e parecia que a música saía de forma muito mais natural. Mesmo depois de todos estes anos, chegamos a pontos em que temos alguns bloqueios mentais e o processo de composição não é tão natural quanto deveria mas, a partir desse álbum, temos estado numa fase muito boa.

Embora tentem sempre incorporar alguns elementos diferentes e arranjos nos vossos temas, como vimos no «Code» e depois no «Smear Campaign» e «Time Waits For No Slave», parece que neste trabalho deram um passo extra.
Para nós foi tudo muito natural, nem houve qualquer mudança drástica: é um disco de Napalm Death. As coisas que fazemos nele são, basicamente, as coisas que temos vindo a fazer nos últimos três ou quatro álbuns mas, de facto, os arranjos estão algo diferentes do que tínhamos vindo a fazer. Por exemplo, as vozes limpas low-tone influenciadas por Swans, My Bloody Valentine ou Joy Division, eram utilizadas nos temas mais lentos pois inseriam-se assim melhor na música e na sua atmosfera. Neste disco, tentei enquadrá-las nas partes mais rápidas e maníacas. De início, duvidei que fosse boa ideia mas resultou e assim ficaram. Mesmo numa banda tão espontânea como Napalm Death, temos momentos no processo de composição em que chegamos à conclusão que uma ideia não resulta tão bem como supúnhamos, mas nos últimos quatro álbuns parece que tudo fez click.

O Mitch [Harris, guitarrista] tem uma participação vocal mais activa neste disco.
Sim, bastante mais. Até existe um tema que é cantado por ele, eu faço apenas o refrão, que é «The Wolf I Feed». Mas foi quase acidental: quando ele ou o Shane escrevem um tema, mostram-no na sala de ensaio com uma linha vocal por cima, para eu ficar com uma ideia do que pretendem e trabalhar a partir daí. Nesse tema, o Mitch cantou e disse-lhe que soava tão bem que não ia ser eu a cantá-lo, por isso ele ficou com as partes principais e eu preenchi alguns espaços. E seria outro tema completamente diferente se fosse eu a cantá-lo, resultou bem assim.

E também te dá mais espaço, permitindo coisas diferentes.
Sim, isso é verdade. Mas eu também tentaria sempre fazer coisas diferentes, independentemente de quem canta que parte, para evitar manter as coisas demasiado unidimensionais. Depois de tantos anos e tantos álbuns é natural querermos dar um sabor diferente às coisas. E acredita, podíamos compor e gravar um disco numa semana, como muitas bandas fazem, editá-lo e voltar para a estrada. Até soaria bem, mas qual o objectivo? Preferimos ser honestos e escrever o melhor disco que conseguirmos.

Pegando nisso, o título deste novo trabalho, «Utilitarian», remete para uma doutrina ética desenvolvida no século XIX. Fala-me da forma que esta teoria filosófica influenciou o disco.
Nas primeiras entrevistas que fiz sobre este disco limitei-me a falar sobre o Utilitarismo mas cheguei rapidamente à conclusão de como isso é contar apenas parte da história. Esse é apenas um aspecto, que não dá uma visão global do álbum e nem sei se eu me consideraria um utilitarista. Identifico-me com alguns aspectos da doutrina, no que diz respeito ao Humanismo e respeito pelos Direitos dos Animais. Mas no outro extremo, um dos princípios da doutrina é a conquista da total felicidade, através de todos meios que forem necessários. E os meios nem sempre justificam os fins, além do conceito de felicidade ser tão subjectivo. Não sei bem se sou utilitarista, queria apenas traçar um paralelo: boas acções têm boas consequências. Vivo de uma forma ética enquanto indivíduo, tento que aquilo que faço não tenha consequências negativas para ninguém. Todos nós já estivemos num ponto das nossas vidas em que temos de tomar uma decisão, que pode ter implicações para terceiros. Tento fazer a diferença para melhor e que a minha vida e as minhas acções valham verdadeiramente a pena. Não seria capaz de viver a minha vida como tantas pessoas que não pensam nas consequências. Mas resumindo, e aquele que é o conceito principal deste disco, é que viver de forma utilitarista é, hoje em dia, uma forma de protesto. Se não o fizermos, vivemos no vazio, e num vazio que pode ser preenchido por aquilo sobre o qual protestamos. Parece, à partida, um conceito algo complexo mas acaba por ser bastante simples.

A ética e consciência social da banda é evidente desde o primeiro dia. Não obstante, consideras que acontecimentos recentes influenciaram as letras deste disco? Refiro-me a movimentos como os Indignados ou Occupy Wall Street.
Com toda a certeza, não há como evitar. E não se tratam apenas de acontecimentos que vemos nas notícias, é também a nível pessoal pois todos temos uma vida e sentimos os problemas na pele. Podemos não estar directamente afectados por um flagelo como a fome, ou repressão na sua forma mais violenta como ainda se regista nalguns países, pois não há dúvida que todos somos reprimidos sobre as mais variadas formas, mas não há como ficar indiferente ao que nos rodeia. Não nos faltam temas sobre os quais falar pois, no final das contas, life is life. Sobre os movimentos que referes, sem dúvida que foram importantes. Pessoalmente, sempre tive consciência dos problemas que nos afectam, acho que a diferença é que as pessoas não protestavam e não exprimiam a sua opinião porque achavam que não havia qualquer sentido nisso e nada iria mudar. Estavam desiludidas ou desmotivadas e essa indiferença infectava tudo. Após o que aconteceu, com esta crise financeira global que tornou as desigualdades mais evidentes, aumentando o fosso entre os ricos e os pobres, as pessoas acharam que já chegava e acordaram para lutar pelos seus direitos. Acho que esses movimentos são extremamente positivos pois há uma corrente de luta contra o poder corrupto e ilimitado dos mercados financeiros. Pode-se fazer a diferença e tudo parece caminhar nessa direcção pois até os políticos já parecem ter percebido o poder dos movimentos, o que me deixa muito optimista.

Relativamente aos motins em Londres deste Verão, e do que acompanhei das notícias nos canais ingleses, parece-me que houve uma tentativa de diminuir a importância daqueles acontecimentos, resumindo-os a actividades criminosas de um bando de arruaceiros. Que leitura fazes do que aconteceu?
Sim, os media tentaram focar as atenções nesse aspecto. Atenção, eu não apoio a violência seja sobre que forma for. Não consigo ver qualquer sentido na perpetuação da violência que ainda se regista. Se perante uma acção violenta existe uma resposta violenta, o ciclo perpetua-se e nada se resolve. Dito isto, obviamente que preferia não ter visto aquelas imagens de violência na televisão, mas há algumas conclusões a tirar dos motins de Londres. Claro que os media tentaram retractar o que aconteceu como algumas pessoas a pilhar e a destruir lojas, a roubar ténis, televisões e outros electrodomésticos. A minha primeira resposta a isso é recordar que todos os políticos, nos últimos 30 anos, estiveram tão empenhados a promover o consumismo e a tecnologia que nem se aperceberam que provocaram este desejo selvagem nas pessoas. Em qualquer situação de desobediência civil, a primeira reacção é ir logo a esses bens, a tudo aquilo a que foram ensinados a desejar. Como podem “eles” criticar o que aconteceu se foram “eles” que o provocaram? Em segundo lugar, a grande maioria das pessoas envolvidas nestes acontecimentos são das classes sociais mais baixas. Se os tratam como animais, se os retém em subúrbios como animais, então só podem esperar que eles se comportem como animais. Isto parece-me óbvio e creio que os media tendem a ver as coisas apenas à superfície. Até termos uma sociedade mais justa, pois mesmo num país relativamente próspero como a Inglaterra, comparativamente com outros, vivem-se grandes assimetrias sociais e desigualdades de toda a ordem, as pessoas vão continuar a comportar-se desta forma. Mas, de facto, a violência não é a forma indicada para nada.

Mas tendo isto começado no Médio-Oriente, nomeadamente com a revolução na Tunísia e depois no Egipto, até à guerra civil na Líbia, em todo o lado assistimos a violência que levou a uma mudança. Não achas que isso possa ter influenciado o Ocidente?
Muito difícil dizer, não sei bem responder a essa pergunta e as circunstâncias são algo diferentes. Alguns países no mundo vivem em ditadura directa, digamos assim. Embora seja bastante crítico dos governos no Ocidente, não é a mesma coisa e podemos, até certo ponto, dizer o que pensamos. Por isso não sei responder a essa pergunta, não é simples. O que sei é que temos grandes desigualdades sociais e temos de as resolver.

E sentes, nos Napalm Death, a responsabilidade de denunciar essas desigualdades?
Até certo ponto, mas não as vamos resolver e as coisas vão continuar a acontecer, embora essa denúncia seja o que as pessoas esperam de nós. Mas tudo parte do simples facto de reconhecermos a nossa humanidade. Grande parte dos problemas nasce porque as pessoas não reconhecem isso. Dou-te um exemplo: a religião. A religião ensinou-nos a não acreditar em nós próprios mas em terceiros, cuja existência não tem qualquer prova. No entanto, existem tantas entidades, ídolos e deuses que se torna prejudicial, pois retira a humanidade e a capacidade de compreensão de outros humanos. A religião não pode substituir a humanidade.

Mas esquecendo a religião organizada, não achas que a fé pode ajudar as pessoas?
Claro, qualquer pessoa deve ter o poder de escolha e nunca lhes retiraria isso. Pode ajudar as pessoas mas de uma forma muito parcial, digamos assim. Como seres humanos, não precisamos disso. Se precisamos de encontrar conforto mais vale procurarmos em nós próprios do que numa entidade cuja existência está por provar.

Mas também não podes, em muitos casos, dissociar a religião da identidade cultural do povo.
Isso é verdade, mas mesmo assim. Eu odeio a Cultura, na maior parte das vezes. Há muitas coisas positivas na Cultura, como a Arte ou outras, mas ainda se apedrejam pessoas. A Cultura é utilizada como desculpa para comportamentos desumanos e também temos de pensar nisso; é muito divisória. Qualquer pessoa pode dizer que a sua religião é a sua cultura, mas eu respondo a isso: nonsense. Não posso aceitar que alguma pessoa considere um deus mais importante que um ser humano.

E a Cultura é feita pelas pessoas, estando em constante evolução. De outra forma, não teriam proibido as touradas na Catalunha, o que seria impensável há uns anos atrás.
Exactamente, e isso é óptimo. Por acaso vi recentemente um documentário muito interessante chamado «The Little Matador», mas sobre o México, onde miúdos de oito ou nove anos vão para o ringue com touros. Mostra todo o contexto à volta disso e, ao contrário do que falámos há pouco, eles não o fazem pela tradição cultural. Fazem-no por fama e dinheiro, os toureiros lá são pop stars. Não há qualquer ligação cultural, a tourada é uma forma de ficarem famosos e escapar à pobreza. Consigo compreender isso, mas utilizar a tortura de animais como um meio para esse fim, é algo a todos os níveis injustificável.

E parece que continuamos na Idade Média, no que diz respeito à forma como tratamos os animais.
Sim, e isso é especialmente preocupante. Como disseste, a Cultura evolui mas também regride. Aqui na Inglaterra tem existido algum debate sobre a caça à raposa. Foi proibida mas estão agora a tentar legalizá-la novamente, sem qualquer argumento válido. Não existiu qualquer impacto negativo nos ecossistemas com a sua proibição mas as pessoas querem-na de volta. Supostamente, faz parte da herança cultural inglesa, mas devia deixar de fazer.

Voltando aos Napalm Death, acham que ainda há coisas por conquistar?
Isso nunca foi um tema discutido na banda, pois houve tanta coisa que nos aconteceu e que nunca julgámos possível. Fomos a primeira banda independente a tocar na União Soviética, quem pensaria isso? E fomos a muitos outros sítios também, e aquilo que desejamos é ir a locais no mundo onde nunca fomos antes. Por acaso, tivemos agora uma hipótese de ir ao Cazaquistão depois da nossa tournée na Rússia, mas já tínhamos outra marcada no Canadá e não conseguimos flexibilizar a nossa agenda. Tanto quanto sei, teríamos sido a primeira banda a tocar no Cazaquistão e foi uma pena não termos conseguido ir. Talvez não devesse ter mencionado isto, agora alguma outra banda nos vai passar à frente [risos]. As tournées na Europa e nos Estados Unidos são óptimas mas é bom sair da nossa zona de conforto e viver novas experiências.

Devias escrever um livro sobre essas experiências. Já pensaste nisso?
Sim, já pensei muito nisso mas é uma daquelas ideias que está a marinar. Pode acontecer um dia, mas não sei bem quando. Agora não seria boa ideia pois algumas pessoas que apareceriam no livro não são amigas e eu sou sempre, talvez demasiado, honesto em relação ao que penso das coisas, pelo que esse livro iria deixar algumas pessoas muito zangadas [risos].