Klássicos: Soundtracks for the Blind

Lembro-me de ter visto, num qualquer filme ou série, uma cena em que um polícia questionava um homem que tinha sido vítima de um ataque violento; ao serem-lhe perguntados pormenores sobre o seu agressor, o homem repondeu algo na linha de “apenas me lembro de levar a primeira pancada, a partir daí it’s all a blur”. A minha relação com os Swans sofre de uma amnésia semelhante. Lembro-me de, como já mencionei há algumas semanas neste mesmo blog ao escrever breves linhas sobre esse disco, ter pela primeira vez nas mãos o The Great Annihilator: na biblioteca da faculdade que frequentei, um edifício de seis andares repletos de tratados de engenharia, existe uma pequena secção com algumas dezenas de CDs de música; um deles, e que provavelmente ainda hoje sofre a ofensa de estar arquivado junto a um disco dos Strokes, é precisamente esse álbum dos Swans. Reconheci o nome da banda, por certa vez o ter visto algures associado aos Mão Morta como uma influência na música destes, e requisitei-o junto da bibliotecária carrancuda do costume. Cheguei a casa, pu-lo a rodar na aparelhagem e, cá está, a partir dos primeiros acordes de “I Am the Sun”, it’s all a blur. É essa a razão pela qual não me recordo da primeira vez que ouvi o Soundtracks for the Blind.

Foi-me difícil escolher um disco de Swans para figurar nesta rubrica, porque todos são klássicos à sua maneira. Não hesito até em enfiar nesse saco o vindouro To Be Kind, mesmo sem ainda o ter ouvido, pois tenho uma sólida certeza que será mais uma forte estocada a contribuir para me afundar nesse negro mas doce nevoeiro. Mesmo The Burning World, álbum um pouco mal-amado por uma fatia dos admiradores da banda e até pelo próprio Michael Gira, é uma presença assídua nos meus headphones. Os Swans são a única banda que ouço todos os dias, ou muito perto disso, apenas seguida de perto pelos Godflesh, de quem são uma influência clara e declarada. Se pudesse escolher a formação de sonho para uma banda, os nomes de Gira e de Broadrick escapar-me-iam dos lábios, sem um milissegundo de hesitação. Talvez um dia aconteça, quem sabe. Mas estou a divergir.

Soundtracks for the Blind saiu em 1996 e foi anunciado como o último disco de estúdio da carreira dos Swans, o que, presumo, terá ocasionado a presença da expressão “o canto do cisne” em mais de 90% das reviews a que foi sujeito. Com uma tracklist de 26 temas e duração de duas horas e meia, Soundtracks for the Blind é a súmula perfeita de todo o trabalho dos Swans durante a sua primeira encarnação, desde o primitivismo industrial dos tempos mais violentos e ensurdecedores de discos como Filth e Holy Money até às soturnas orquestrações folk de Love of Life ou The Burning World.

Soundtracks for the Blind é um disco majestoso na sua sobriedade, e extremamente plural: ouvem-se field recordings e experimentações com tape loops; longos e expansivos temas rock, como “Helpless Child”; a canibalista “Yum-Yab Killers”, na voz de Jarboe, e  “The Final Sacrifice”, na voz de Gira, ambas gravadas em concerto; em “How they Suffer”, podemos escutar o pai do próprio Gira a falar sobre o glaucoma que o privou da visão, bem como Jarboe a entrevistar a sua mãe no seu leito de doença; “The Sound” é talvez o tema à volta do qual o disco gira – o single, a súmula dentro da súmula, ou o klássico dentro do klássico; em “Volcano”, a voz de Jarboe sobrepõe-se a um bizarro lençol de techno; “All Lined Up” e “YRP” são reinterpretações de temas prévios da discografia. Mesmo englobando tudo isto e ainda mais, Soundtracks for the Blind nunca soa desconexo. É, sim, uma banda sonora para a cegueira – não a cegueira física como a do pai de Gira, mas a mísera cegueira da circunstância humana, a desesperança do desconhecimento de um futuro sobre o qual apenas temos uma única e final certeza.

 A história posterior a Soundtracks for the Blind é conhecida: Michael Gira encetou nova empreitada com os Angels of Light e Jarboe desenvolveu a sua carreira a solo, enquanto os Swans pareciam desaparecidos para sempre. Avancemos até 2010, quando, numa tarde soalheira de Janeiro, vim a saber que na página myspace dos Swans surgira a mensagem Swans are not dead. Os Swans regressariam ainda nesse ano, sem Jarboe mas com um Michael Gira de energias redobradas, para assinar um excelente My Father Will Guide Me Up a Rope to the Sky, ao que se seguiu a obra-prima The Seer em 2012. To Be Kind será, portanto, já o terceiro álbum dos Swans depois da ressurreição que constitui o regresso musical mais relevante e artisticamente sucedido dos últimos anos.

Amanhã, Michael Gira apresentará as canções dos Swans e dos Angels of Light, num formato confessional e íntimo, no que será a sua estreia a solo na nossa cidade, numa das nossas salas preferidas e para o melhor público do mundo (perguntem ao Scott Kelly). Todos os ingredientes para uma noite perfeita, portanto.

Até lá, amigos. Está quase.

 

Disc One (Silver)

1. Red Velvet Corridor
2. I Was a Prisoner in Your Skull
3. Helpless Child
4. Live Through Me
5. Yum-Yab Killers
6. The Beautiful Days
7. Volcano
8. Mellothumb
9. All Lined Up
10. Surrogate 2
11. How They Suffer
12. Animus

Disc Two (Copper)

1. Red Velvet Wound
2. The Sound
3. Her Mouth Is Filled with Honey
4. Blood Section
5. Hypogirl
6. Minus Something
7. Empathy
8. I Love You This Much
9. YRP
10. Fan’s Lament
11. Secret Friends
12. The Final Sacrifice
13. YRP 2
14. Surrogate Drone