É comum ouvir em fóruns e certos espaços de discussão que países como França, Itália ou Espanha quer pela sua estratégia de marketing como pelo baixo consumo do seu mercado actual, não tiveram um grande contributo para a música que se ouve hoje em dia. Pregando atestados de menoridade, muitas vezes por pura ignorância, a uma larga franja de actividade musical e artística de países hoje considerados, periféricos. Se são periféricos ou não, a verdade é que foram relegados para uma categoria inferior, à margem de um círculo de exploração. Na era da Internet, estes falsos axiomas são mastigados, digeridos e vomitados ad eternum e a uma velocidade estonteante. Parece estranho à primeira vista para quem confunde esta coisa da música com a sua própria vida, mas estas construções centralistas e anglo-saxónicas definem bem o rumo comercial que os panfletários contemporâneos espremeram com a multiculturalidade. O argumentário do ciberespaço passou a considerar o ritmo do download e a liberdade de circulação digital como amarras da democratização do consumo. Duvido muito. A verdade é que em substituição dos ditames tradicionais a indústria conseguiu replicar numa aparente globalização, as mesmas fórmulas e vícios em permanente cumplicidade com órgãos de comunicação e mediação obsoletos. Falo disso na minha segunda crónica. Se as redes sociais, a blogosfera e o mercado web ajudaram nesta demanda? Sem dúvida, mas os efeitos são quantitativos e não qualificativos. No intenso processo de investigação de música obscura dos anos setenta que tenho vindo a efectuar, há quase três anos, essa constatação é por demais evidente. Entre fontes fidedignas, sites rasteiros e prestimosos mecenas, impera a contra-informação, a vacuidade e os rumores no meio de factos e fundamentos. A Internet passou de ferramenta de confirmação e auxílio para um totalitarismo da verdade. É escusado dizer que ela não é bem isso. Ainda na universidade li uma entrevista do jornalista português, Baptista Bastos, que me despertou para uma ideia já coligida. Dizia ele que nesta época da notícia à distância de um clique, da proliferação de sites noticiosos e do bombardeamento mediático, não haveria necessariamente um público mais informado. Pelas palavras dele, “hoje em dia, podemos consultar um jornal americano ou chinês mas não sabemos nada do que se passa em Badajoz”. Esta ilusão do conhecimento supersónico e voraz veio eximir o sacrifício e a iniciativa que acarretam. Os media, sugados pelos tentáculos da indústria, abstiveram-se a uma comunicação directa (reportagem no local) em prol de uma comunicação indirecta (tradução do global). E pelo mesmo caminho, passou um cilindro em certas partes da história. Que é o que realmente me fascina neste universo da música. As pérolas, os garimpeiros, o digging.

No passado domingo à noite, uma dupla de música electrónica arrebatou os grammy awards, a maior e mais prestigiada cerimónia da indústria musical, na companhia de alguns amigos, uns mais conhecidos que outros. No coração do golias, na boca do lobo ou simplesmente no Staples Center de Los Angeles, os Daft Punk conseguiram perpetrar uma das partidas mais interessantes e irónicas em várias edições. Rodeados de plasticidade, superficialismos e bonecos “oscarizáveis”, os franceses fizeram com que uma máquina gigantesca se reconciliasse com um estrugido de funk americano, disco soul, house, techno, euro-disco, electro, que se renegavam a aceitar pela ditadura das massas. Como diz Vítor Belanciano numa das suas últimas crónicas, “(os Daft Punk) sabem que, para subverter o supermercado, têm de estar dentro dele, assumindo-se como produto, numa lógica onde música, imagem e marketing fazem parte do processo criativo, sendo por eles controlado”. O controlo é a palavra-chave desta estratégia. “Random Acess Memories”, o disco premiado dos robots, foi a consumação do plano. A declamação de uma história audiofónica sobre a música de dança de várias gerações e espaços diferentes. De Nile Rodgers que era até há bem pouco tempo um pioneiro postergado até Pharrell Williams, o neptune que se tornou na voz negra do funk americano. Por vezes, a música coloca o público acima dos próprios fiscais do bom gosto. Mas quem fará a ponte para esta minha terceira “pentatónica verbal” é outro homem. Aquele que também arquitectou uma obra do passado para o futuro e que serve de introdução para esta viagem a Itália. Giorgio Moroder. Perceberão depois. Neste ensaio que irei alargar a duas partes, falar-vos-ei de três períodos importantíssimos para a música italiana: as “colonne sonora”, o rock progressivo italiano (RPI) e a electrónica dos anos oitenta.
Porque nem só do Zucchero, do Ramazzotti ou da Laura Pausini se fez este país. Felizmente.


I – Quando o filme e a música se uniram num só!
O cinema italiano conheceu o seu apogeu dos anos cinquenta aos setenta. Durante esse período, reuniu-se uma das gerações mais brilhantes e talentosas do cinema mundial que centrou o país transalpino como a máxima referência da sétima arte no mundo. Frederico Fellini, Rossellini, Bernardo Bertolucci, Pasolini, Visconti ou Michelangelo Antonioni entre muitos outros, estavam na proa de uma constelação dissemelhante e neo-realista que se equivalia ao movimento artístico contestatário da nouvelle vague. Da transição dos western-spaghetti de Sergio Leone para as comédias de Benigni, os giallo de Mario Bava ou para os filmes de terror de Dario Argento, este movimento percebeu astutamente que a junção entre imagem, narrativa e som seria o maior trunfo para discorrer uma boa história em movimento. É por isso normal que na sonorização do cinema moderno italiano, estes cineastas tenham recorrido a outra brilhante e esquecida geração de compositores para as suas bandas sonoras. É aí, que se descobrem várias surpresas.

O nome mais representativo e familiar da cultura pop, talvez seja o de Ennio Morriconne. O maestro romano coleccionador de inúmeros prémios, escreveu mais de 500 passagens musicais para filmes nos quais se destacam “O Bom, o Mau e o Vilão”, “Cinema Paraíso”, “Três homens em conflito”, mantendo uma saudável parceria com Leone. Devem lembrar-se por exemplo da introdução do “S&M” dos Metallica com a Orquestra Filarmónica de San Francisco. Chama-se na realidade “The Ecstasy of Gold” e podem ouvi-la enquanto o Clint Eastwood masca tabaco. Formou-se na clássica, foi percursor da improvisação livre com o Gruppo di Improvvisazione di Nuova Consonanza, conduziu orquestras, colaborou com Chet Baker, Paul Anka, Joan Baez, John Zorn. Fez de tudo um pouco. O último filme com a sua batuta dá pelo nome de “Inglourious Basterds”. Mas não só deste homem, a Itália se fez representar. Franco Micalizzi, Piero Piccioni, Armando Trovajoli, os irmãos De Angelis, Bruno Nicolai, Stelvio Cipriani, Gianni Ferrio, Riz Ortolani, Franco de Gemini, Nino Rota, Piero Umiliani, Franco Godi. A lista não acaba mais. Os discos, na sua maior parte, estão editados como obras completas de trilhas sonoras dos filmes. A maior parte destes músicos tinha o jazz americano como grande influência no qual a empregaram na comédia italiana e partiam da formação clássica, a exemplo de Morriconne. Integrando nestas bases clássicas e jazzísticas e própria tradição oral italiana e o folk, como a tarantella. Foram os grandes percursores daquele som tão distintivo que nos habituamos a ouvir nos antigos westerns e nos cortes de Tarantino. Trovajoli, a modelo disso, pode ser ouvido em “Kill Bill”. O pianista e maestro manteve uma longa colaboração com Dino Risi, Vittorio de Sica ou Ettore Scola, compondo as trilhas sonoras de “Ontem, Hoje e Amanhã” e “Matrimónio à Italiana” com a maravilhosa Sophia Loren. Tocava também, periodicamente, com o famoso grupo de estúdio “Marc 4”, responsável por cunhar o funk ao estilo italiano. Partilhou um dos seus grandes feitos com Nino Rota na antologia cinematográfica “Boccaccio ’70”. O turinês Piccioni, autodidacta, começou a tocar jazz ainda criança. Era obcecado por Duke Ellington. Compôs mais de 300 obras para filmes de Francesco Rosi, Visconti, Monicelli ou Bertolucci. Já viram o Big Lebowski? Pois, ele entra lá por gentileza dos irmãos Coen. Foi o único pianista italiano a tocar com Charlie Parker e o primeiro a tocar na rádio com uma orquestra de jazz. Franco Micalizzi foi outro dos predestinados a surgir desta colheita dourada. Famoso pelas bandas sonoras de policiais e “Macaroni Combat” de Umberto Lenzi, também se entregou ao universo western. Vejam à confiança e da minha parte o “Il pistolero dell’Ave Maria”, um filme soberbo com a sua composição. Recordam-se perfeitamente da perseguição das meninas ao Kurt Russell no “Death Proof”, certo? É dele essa parte, inspirada no filme “Italia a mano armata”. A sua peça “The Puzzle” entrou também na banda sonora de Curb Your Enthusiasm de Larry David.

Não esquecer também o “Cannibal Holocaust”, polémico filme de Rogerio Deodato, com a participação sonora de Riz Ortolani. Na mesma linha do terror, o marquesão escreveu também a trilha do “Danza Macabra” e musicou várias paisagens estilísticas como o giallo, o erótico, o exploitation, espionagem e o mondo film. Foi outro dos grandes consortes de Quentin Tarantino com quem trabalhou em “Django” e “Kill Bill”, para além de ter dedo em “Drive” de Nicolas Refn. Morreu na passada quinta feira.
Quanto aos irmãos De Angelis, intitulados Oliver Onions, foram arranjadores e compositores para os filmes de Terence Hill e Bud Spencer. Já agora, o Terence e o Bud são apenas os pseudónimos do veneziano Mario Girotti e do napolitano Carlo Pedersoli. Desculpem estragar-vos a infância. Para o final deixo-vos com um dos mais especiais, os Goblin. Um dos grandes grupos de rock progressivo da bota europeia, pioneiros no uso dos sintetizadores, foram grandes compositores de trilhas sonoras e cúmplices de sangue, do sinistro Dario Argento. Consta-se que os Pink Floyd tinham sido convidados para musicar “Profondo Rosso”, um dos êxitos do mestre de terror e que pela recusa dos ingleses, avançaram os italianos. De seguida, prosseguiram com “Roller” o seu primeiro álbum progressivo, “Suspiria” e “Zombi – Dawn of the Dead” de George Romero. O resto é história. Hoje em dia, andam em tour com os americanos Zombi – quanta ironia.

Para introdução a todo este fantástico universo cinema-música, sugiro-vos os três volumes da compilação “Beat at Cincecittà”, pela editora germânica “Crippled Dick Hot Wax!”. Depois de tantos anos, filmes e álbuns em enfiada, pode-se concluir que foi uma parceria positiva para os dois lados. Os cineastas alimentaram a carreira destes músicos e os músicos elevaram os filmes destes senhores a um outro patamar. Foi sem dúvida uma das marcas mais distintas até à invasão do rock progressivo britânico.

(Continua na próxima semana)

Manuel A. Fernandes escreve de acordo com a antiga ortografia.