NYC
“Mais sirenes aqui, dia e noite. Os carros são mais rápidos, a publicidade mais agressiva. Isto é prostituição de parede-a-parede. E também luz eléctrica total. E o jogo – todos os jogos – torna-se mais intenso. É sempre assim quando nos aproximamos do centro do mundo. Mas as pessoas sorriem. Na verdade sorriem cada vez mais, mas nunca para os outros, sempre para elas mesmas.
O número de pessoas que aqui pensam sozinhas, cantam sozinhas, comem e falam sozinhas nas ruas é espantoso. E no entanto elas não se adicionam. Pelo contrário. Subtraem-se umas às outras e a semelhança entre elas é incerta.
No entanto há uma certa solidão como nenhuma outra – aquela do homem a preparar a sua refeição em público numa parede, ou no tejadilho do seu carro, ou ao longo de uma cerca, sozinho. Vê-se isto constantemente aqui. É a visão mais triste do mundo. Mais triste que a destituição, mais triste que o pedinte é o homem que come sozinho em público. Nada contradiz mais as leis do homem ou besta, já que os animais dão sempre aos outros a honra de partilhar ou disputar a comida de cada um. Aquele que come sozinho está morto (mas não aquele que bebe sozinho. Porque será?)
Porque é que as pessoas vivem em Nova Iorque? Não há qualquer relação entre elas. Excepto pela electricidade interior que resulta do simples facto de estarem amontoadas conjuntamente. Uma sensação mágica de contiguidade e atracção para uma centralidade artificial. Isto é o que cria um universo auto-atractivo, do qual não há razão para se sair. Não há qualquer razão humana para se estar aqui, excepto pelo puro êxtase de se estar amontoado conjuntamente.
Em Nova Iorque há este duplo milagre: cada um dos grandes edifícios e cada um dos grupos étnicos domina ou já dominou a cidade – de acordo com a sua própria moda. Aqui a lotação acende a centelha de cada um dos ingredientes na mistura enquanto que noutros lugares tende a cancelar as suas diferenças.
(…) na grande capital de Nova Iorque as vertiginosas fachadas de vidro reflectem cada edifício para os outros. Assim que se põe os pés na América, sente-se a presença de um continente inteiro – o espaço que é a verdadeira forma do pensamento.
[Na Europa fechou-se] a possibilidade de estes monstros se colocarem em perigo uns aos outros até ao infinito, que eles possam lutar num espaço tornado dramático pela sua própria competição. (…). É em tal espaço que nasce o puro objecto arquitectónico, um objecto fora do controlo dos arquitectos, que redondamente repudia a cidade e os seus usos, repudia os interesses do colectivo e do indivíduo e persiste na sua própria loucura. Esse objecto não tem equivalente, excepto talvez na arrogância das cidades da Renascença.
Não, a arquitectura não deve ser humanizada. Anti-arquitectura, de tipo verdadeira (…), selvagem, do tipo inumano que está para lá da medida do homem foi criada aqui – criou-se a si mesma aqui – em Nova Iorque, sem considerações de cenário, bem-estar ou ecologia ideal. Optou pelas tecnologias duras, exagerou todas as dimensões, jogou com o céu e com o inferno…Eco-arquitectura, eco-socidade…este é o inferno brando do Império Romano no seu declínio.
Dizem que as ruas na Europa estão vivas, mas mortas na América. Estão errados. Nada poderá ser mais intenso, electrificante, turbulento e vital que as ruas de Nova Iorque. Elas estão cheias de multidões, movimento e publicidade, cada qual por sua vez agressiva ou casual. Há milhões de pessoas na rua, deambulando, despreocupadas, violentas, como se não tivessem nada melhor para fazer – e sem dúvida não têm mais que fazer – do que produzir o cenário permanente da cidade. Há música em todo o lado; a actividade é intensa, relativamente violenta, e silenciosa (não é a actividade agitada e teatral que se encontra na Itália). (…) A rua americana não terá, talvez, conhecido estes momentos históricos [comparação com a Europa], mas é sempre turbulenta, vivaz, cinética e cinemática, tal como o próprio país, onde o palco especificamente histórico e político conta pouco, mas onde a mudança, quer incitada pela tecnologia, diferenças raciais ou os média, assume formas virulentas: a sua violência é a própria violência do modo de viver.
Tal é o redemoinho da cidade, tão grande é a sua força centrífuga, que seria necessária força sobre-humana para imaginar viver como um casal e partilhar a vida com alguém em Nova Iorque. Apenas as tribos, gangues, máfias, sociedades secretas e comunidades perversas conseguem sobreviver, mas não casais. Esta é a anti-Arca. Na primeira Arca, os animais vinham dois a dois para salvar as espécies do grande dilúvio. Aqui nesta fabulosa arca, cada qual vem sozinho – cabe-lhe a ele ou ela em cada noite encontrar os últimos sobreviventes para a última festa.
Em Nova Iorque, os loucos foram libertados. Uma vez na cidade são difíceis de distinguir do resto dos punks, drogados, viciados ou desalinhados que a habitam. É difícil de ver porque numa cidade tão louca como esta se manteria os seus loucos nas sombras, porque se retiraria de circulação espécimes de uma loucura que na verdade, nas suas mais variadas formas, tomou conta de toda a cidade.”
[Excertos de “New York” de America; Jean Baudrillard; 1986 (minha tradução, minha foto)]
Porque é que o Jean Baudrillard é sempre tão certeiro naquilo que escreve, com o seu sarcasmo inigualável? Mesmo mais de 20 anos depois do texto original dificilmente conseguiria sumariar tão bem muitas das minhas impressões desta cidade.