O Tio Pires e o seu conjunto

Tenho algumas recordações do dia 28 de Janeiro de 1986, o dia em que o Space Shuttle Chalenger explodiu nos céus da Florida. Recordo-me perfeitamente do facto de ter ficado em casa a ver as imagens na televisão comentadas pelo Sr Eurico da Fonseca e de, à conta disso, ter chegado atrasado à ginástica respiratória. Creio que o Professor Mario Maria terá dito qualquer coisa sobre o facto do Homem se intrometer no trabalho de Deus e como desde que o homem foi à lua nada mais foi como antes.

Em concreto, não me lembro de mais nada desse dia. O único facto de que tenho praticamente a certeza é que devo ter ouvido o This Nation’s Saving Grace dos Fall algures durante o dia. O album saiu em Setembro de 1985 e eu comprei-o nas férias de natal do mesmo ano, numa loja de discos do Centro Comercial Brasilia, com o dinheiro que um amigo meu me tinha dado para lhe comprar um qualquer disco do Jonathan Ritchman & The Modern Lovers (desculpa lá Zé… nunca te devolvi o dinheiro). E durante o mês seguinte creio que não devo ter ouvido mais nada.

Ouvi os Fall pela primeira vez numa cassete que me emprestaram pouco tempo antes. Num dos lados tinha o Hex Induction Hour e no outro o the Wonderfull and Frightning World of the Fall (aquela versão de cassete com uma quantidade de temas extra). Para um miudo de 14 anos que deveria andar a uma dieta de Cure ou qualquer outra coisa do género, temas como Hip Priest e C.R.E.E.P. pareciam vindos de outro planeta.

Já tinha ouvido alguns temas do This Nation’s no Som da Frente, mas o conjunto de temas era incrivel. Mansion, Bombast, LA, Paintwork, I am Damo Suzuki…. Tornei-me um fã incondicional dos Fall e desde essa altura fui acompanhando a banda como podia. Comprava os discos que encontrava quando vinha ao Porto, copiava os outros. Achava piada às particularidades do Mark E Smith, ao facto daquilo ser a banda DELE, achava todos os temas perfeitos – O Curious Orange é realmente perfeito.

Mas há limites para tudo e com o tempo lá me fui convencendo que nem tudo eram rosas no mundo maravilhos e assustador dos Fall. Falha sempre qualquer coisa. Sempre achei que pareciam albuns feitos em cima dos joelhos. Mal produzidos. A estética do “Ai queres um album novo? Toma lá e não me chateies”. Acompanhar o ritmo de produção dos Fall nos anos 80 era complicado e os vinis com aquele autocolante a dizer “Import” custavam tanto como um CD hoje em dia. Aguentei até ao album Extricate.

A partir daí ainda ouvi com atenção o Light User Sindrome (creio que foi o primeiro sem o guitarrista Craig Scanlon e o ultimo com a Brix Smith). Adorei o Marshal Suite, o album pós incidente de Nova Yorque em que Mark E Smith se desentende com a banda em pleno palco, bate na namorada da altura (a teclista Julia Nagle), a banda regressa a Inglaterra e deixa o pobre Mark E Smith na cadeia em NY.

Este ano saiu um novo album dos Fall. Your Future our Clutter e é o melhor album deles nos ultimos anos. Pela primeira vez desde o This Nation’s voltei a ficar entusiasmado com um novo album de Mark E Smith (ao contrário de muito boa gente não achei piada nenhuma à aventura extraconjugal com os Mouse on Mars).

Durante estes anos, nunca tive a oportunidade de ver os Fall ao vivo em nenhuma das suas vindas a Portugal. O mais próximo que tive de os ver foi no célebre concerto cancelado no teatro Sá da Bandeira em que, segundo reza a história, só tinham sido vendidos 12 bilhetes (2 eram meus).

O estado de ansiedade antes do concerto deste sábado era imenso. Os Fall ao vivo pela primeira vez e ainda por cima com um album tão bom para apresentar. Pelo caminho comentava com a minha cara metade que bom bom era ser um concerto de Fall “à séria” em que Mark E Smith se passasse e batesse num membro da banda ou se desentedesse com alguém do público.

Como um velho amigo, Mark superou as minhas expectativas. Quando entra em palco, pouco ou nada o distingue de um morador de Matosinhos a dirigir-se para as compras no supermercado a um sábado de manhã. O casaco igual a qualquer um que me poderia ter sido oferecido pela minha mãe no Natal. A postura “descontraída” em palco, a sua “sensibilidade” a mexer nos amplificadores do resto da banda, a “delicadeza” com que tratou todos os microfones, o “virtuosismo” a tocar teclados. O interesse demostrado num bocado de papel amarrotado, que tanto podia ser a set list como uma lista de compras e a sua irritação com o que parecia ser um velho walkman que teimava em não colaborar no espetáculo de Mark. Quando lhe apeteceu, Mark foi-se embora sem dizer adeus, tipo “olhem, acabem lá isso que eu vou beber um copo”. Os Fall são Mark E Smith e uns convidados. Mark não desiludiu. Mark superou tudo o que eu estava à espera.

Há alturas, nestes dias quentes de verão, que quando chegamos a casa depois de um dia de trabalho sabe bem saber que temos uma cerveja fresca no frigorífico. Os Fall são a minha cerveja fresca.

Alguém me disse no final que o Mark lhe parecia o seu tio Pires. Todos nós temos um tio como o Mark. Aquele tio de que toda a gente gosta.

Obrigado tio Pires, volta sempre.