Partimos de Beethoven e chegámos a Barn Owl

Também os Mono gostam de combinar mundos

 

Podemos concluir, portanto, que terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a Era do Plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada. (Tom Zé)


Quando comecei esta rubrica não sabia ao certo que compositores abordar nem como fazer as pontes entre música clássica e popular. No entanto, dois meses depois, tenho de agradecer ao André por me ter obrigado a pensar acerca deste tema, pois tive de ir ouvir muita coisa que estava na lista de espera há demasiado tempo. Agradeço também a todos os que leram e comentaram os meus posts, já que a comunicação é sempre mais interessante quando não é unilateral. Espero não ter entrado em demasiadas “generalidades aborrecidotécnicas”, já que sempre as achei intimidantes para quem não quer racionalizar a música. Mais importante do que aprender a tocar escalas, ou o nome dos acordes, é aprender a escutar verdadeiramente, deixando de lado as ideias pré-concebidas.

O desafio foi enorme, porque é impossível resumir cem anos de música em meia dúzia de posts. As escolhas foram uma mistura entre as minhas preferências pessoais e a importância que é geralmente dada a cada um dos compositores abordados. Aqui estão outros cinco que tive de cortar da lista:

 

Ligeti – Artikulation

Referi muito brevemente Ligeti quando falei de John Cage, mas era outro compositor ao qual podia dedicar um longo post. Deixo aqui apenas uma composição, por dois motivos diferentes. Primeiro, para mostrar que a notação musical que sobreviveu centenas de anos está a tornar-se obsoleta, pois a música electrónica exige novas formas de escrever pautas (esse vídeo é mais um trabalho artístico do que uma linguagem real, e ainda não existe nenhuma verdadeiramente eficaz). O segundo motivo inclui uma proposta: ouçam com auscultadores. Reparem de onde vêm os sons, como passam de um lado para o outro, tentem perceber a que “distância” eles estão… já em 1958 havia compositores a compreender o potencial do stereo. Rainer Wehinger não o descura na sua “partitura” da música, incluindo no topo indicações relacionadas com a localização dos sons sempre que algo muda.

Ravi Shankar & George Harrison

Ravi Shankar deve ser o mais famoso compositor e intérprete de música clássica indiana. Sem garantias de sucesso, arriscou dar vários concertos pela Europa e Estados Unidos, recebendo aceitação suficiente para vir a tocar no Woodstock de 1969. Com uma ajudinha dos Beatles, ajudou-nos a conhecer e apreciar uma música bastante diferente da nossa. O som da cítara continua a ser exótico, mas já nos é familiar.

Charles Ives – 3 Quarter-tone Pieces

Microtonal quer simplesmente dizer que, no espaço de uma oitava, temos mais do que 12 notas. Se quisermos ser generosos, até podemos dizer que os blues incluem microtonalidade, com os bends de ¼ de tom que alguns guitarristas costumam fazer. Com a influência indiana, começámos a ver na música popular as potencialidades de uma escala alargada, e os baixos e guitarras fretless alargaram os nossos horizontes.

A microtonalidade, porém, acompanhou-nos durante muitos séculos. Ganhou mais destaque no início do século XX porque foi outra das respostas ao “fim da tonalidade”. Um dos impulsionadores dessa “técnica” nos Estados Unidos foi Charles Ives, um génio cuja vasta obra só começou a ser verdadeiramente apreciada já depois da sua morte. Na peça que aqui partilho, um dos pianos está afinado ¼ de tom abaixo do outro. As melodias são agradáveis, mas Ives prova que estamos demasiado habituados aos 12 tons ocidentais: até começarmos a compreender a música, vamos ouvir dezenas de notas “desafinadas”.

António Pinho Vargas – Três Quadros Para Almada

Os portugueses são praticamente irrelevantes para a história da música moderna, a não ser que insistamos em ter conta a ascendência portuguesa de John Philip Sousa. Se pegarem num livro sobre a história da música do século XIX ou XX, estranharia muito que houvesse qualquer referência a Portugal, apesar de termos dado ao mundo excelentes intérpretes (Maria João Pires) e compositores mais aclamados “lá fora” do que cá (Emmanuel Nunes). Pequenismos à parte, esta sugestão é o oposto da que fiz de uma música de John Zorn no antepenúltimo post da rubrica: aí, tínhamos um compositor de jazz “difícil” a compor música clássica calma; aqui, temos um compositor de jazz calmo a compor música clássica “difícil”.

Daniel Sampaio – Amplificollage

Vá, estou a brincar. Mas depois do meu post sobre Stockhausen, um amigo mandou-me uma certa música e experimentei misturá-la com a composição clássica que estava a ouvir na altura; depois, por brincadeira, fui acrescentando outras. Em jeito de despedida, já que somos capazes de nos cruzar por aí em concertos, pago um fino a quem identificar o maior número de músicas na colagem. Posso ter cortado coisas aqui e ali, mas não alterei a velocidade nem o pitch de nenhuma passagem; todas as músicas clássicas presentes foram abordadas na rubrica; e, fora isso, há mais passagens de bandas trazidas a Portugal pela Amplificasom do que de outras. Quem é que resiste ao início denso e aceita o desafio?

 

A “retromania” e a utilização da electrónica tanto na música clássica como na música “ligeira” podem ser provas diferentes de que estamos a chegar ao fim de um dos períodos mais criativos da História. Talvez o rock “puro” passe a ser um género musical de covers, da mesma forma que as óperas de Mozart e as sinfonias de Beethoven continuam a encher salas de espectáculos. É certo que havia quem dissesse isso com o fim dos Beatles, com o declínio do metal nos anos 90, e por aí fora. Mas a verdade é que os princípios teóricos que servem de suporte a quase todos os géneros musicais ocidentais têm já mais de quatro mil anos e, numa época em que toda a gente tem vontade e meios para criar algo, as combinações possíveis vão-se esgotando, até sobrarem apenas pequenas variações de géneros consolidados.

Haverá mal nisso? O nosso tempo de vida é demasiado curto para podermos apreciar toda a música que é feita por este mundo fora (não conheço nem metade da música produzida por qualquer um dos compositores que abordei). Resta-nos apreciar ao máximo aquilo que vamos conhecendo e, se ficarmos fascinados por uma música, seja ela de que género ou período for, não devemos tentar esconder o brilho nos nossos olhos. Não há vergonha em gostar de arte.

http://youtu.be/-bYBJAQ-_24

 

Nas últimas semanas:

E depois de Beethoven?

De Schoenberg a Peter Brötzmann

De Stravinsky a Meshuggah

De John Cage a Sun Ra

De Stockhausen a Aphex Twin

Defensores da tradição

De Steve Reich a GY!BE