Pauleatoriedades: My Bloody Valentine

http://www.youtube.com/watch?v=HzvcbvYHpLA

Por muito que eu gostasse de dissertar aqui sobre a razão pela qual adoro os My Bloody Valentine – que não é uma só, são várias, e começam no rock gótico de This Is Your Bloody Valentine acabando na banda-sonora do Lost In Translation, esperando-se que aumentem este ano depois daquilo que disse o Sr. Shields à Pitchfork – hoje não o vou fazer. Prefiro contar a vez em que eu, jovem só, amante do ruído e trabalhador da Worten, me desloquei até ao Algarve para ver o quarteto actuar num dos piores festivais alguma vez organizados. Faço-o por dois motivos: porque, nesse festival, éramos, fãs de MBV, muito poucos (não só pela enorme falta de condições como pelo facto de que, no mesmo dia à mesma hora, os Faith No More actuavam no Sudoeste), e porque quero responder à pessoa simpática que fez o upload do vídeo que aqui deixei. «My Bloody Valentine sucked», filho da puta?

Escrevo por partes. Foi há quase três anos, e a minha memória é capaz de me atraiçoar num ou outro pormenor sem importância. Talvez comece pela compra dos bilhetes; foi na Worten (tinha desconto) do Vasco da Gama (trabalhava na de Alverca) e comprei-o juntamente com o ingresso para o concerto de Leonard Cohen no Pavilhão Atlântico (que foi igualmente do cacete). A viagem não foi tão preparada quanto improvisada. Do meu círculo de amigos e conhecidos da altura, ninguém sabia sequer quem eram os My Bloody Valentine, quanto mais gostar deles. O que me levou a seguir viagem da mesma maneira que havia seguido para Paredes de Coura em 2008, para ver os Thievery Corporation (sim, eu sei): sozinho.

Mas hey, o que são +200km para um puto que se diz do rock n’ roll? Nada, absolutamente nada. E, quando olho para trás, acho que se tivesse ido acompanhado não teria tido nem metade da pica que foi. Certo, a viagem Lisboa-Faro encafuado no comboio é sempre chata quando não se tem ninguém com quem falar (e eu não tenho por hábito meter conversa com estranhos – foda-se, nem sequer com conhecidos), mas isso, no que toca ao percurso, foi o menos. O problema maior surgiu quando me dei conta de que os autocarros prometidos de Portimão ao Autódromo, na realidade, não existiam ou estavam incrivelmente atrasados. Solução: ou ir de táxi, que não era verdadeiramente uma solução dado não ter levado uma quantidade razoável de dinheiro (pensamento de jovem ingénuo: ir e voltar no mesmo dia, é na boa, como umas bolachas), ou ir até à Mexilhoeira Grande, a estação que o Google Maps me disse ser a que estava mais perto do recinto, e seguir o resto a pé.

Tenho por hábito percorrer as ruas da minha cidade diariamente a ouvir música. Ajuda-me a descontrair. Queimo calorias. E fico com um par de gémeos quase tão fantásticos como os do Cristiano Ronaldo. Daí que fazer esse percurso a pé não tenha parecido algo tão terrível. Acho que percebem onde quero chegar; tive, naturalmente, de enfrentar dois enormes problemas:

1) Dez quilómetros a pé é mesmo mesmo muito;
2) A temperatura de um Algarve em Agosto é insuportável.

Até porque, primeiro, tive de tentar descobrir onde estava – perguntar a alguém, nem pensar. Antes morrer que contactar com um ser humano. Depois de uma hora às voltas na Mexilhoeira, lá dei com uma placa meio escondida apontando ao autódromo: nova dose de confiança. O caminho era longo, solitário e cansativo, e ainda era obrigado a aturar, uma vez por outra, o carro ocasional que passava com um bando de ou bêbados ou parvos a gritar “HEY” quando, sob um calor filho da puta e uma sede mal saciada pelas garrafas de Ice Tea que trazia, o que mais se quer é sossego até se alcançar o objectivo. Percorri uns bons seis ou sete quilómetros em duas horas, até que uma carrinha pára à minha frente: ia ultrapassá-la na berma quando, lá de dentro, um senhor nos seus quarenta anos me faz a pergunta mais retórica de sempre.

«Ó jovem, você vai para o festival? Não quer uma boleia? Entre lá aí»

Bem sei que disse detestar o contacto humano, mas também disse que tinha acabado de andar duas horas ao sol; o meu raciocínio, nestas circunstâncias, torna-se não parco mas inexistente. Siga. Assim, o tempo que demorei a fazer o restante percurso foi cinco minutos e não cinquenta. Quase chorei de emoção ao ver o imponente autódromo, um monstro no meio do nada. Ainda hoje não sei o que por se lá passa ou se continua por lá sequer. Pareceu-me ter visto na altura um anúncio de corridas de karts, mas já não me recordo bem. Irrelevante: tinha chegado ao sítio onde me preparava para ver uma das bandas que mais adorava e adoro. Tudo o resto é supérfluo. Agradeci ao algarvio simpático e fui para junto das grades.

Sozinho.

Não estou a brincar: eram umas quatro da tarde e aquilo estava vazio. Não se viam nem fãs de MBV (lol) nem de Offspring, claramente a banda que a maioria tinha ido ver. Não se viam os corajosos campistas (li histórias terríveis pela net fora, mais tarde). Não se viam os seguranças. E, a dado ponto, já nem via a carrinha que me tinha trazido. Pareceu uma cena retirada de um filme.

Uns dez minutos depois ouço um par de vozes: era um casal a meio caminho entre o puto e o adulto. T-shirts de Green Day. Viram-me e sentaram-se no pouco espaço com relva e sombra que por lá havia. Depois, foram chegando mais, todos vestidos com o pop-punk, todos muito novos, alguns vindos até de Espanha. Durante hora e meia fomo-nos aglomerando nas grades, até que, finalmente, surgiram os seguranças, fardados a rigor, para abrir a cancela.

«Meus amigos, vamos lá esclarecer: bebidas, comida, nada disso entra lá p’ra dentro.»

Foda-se.

Quase me juntei à fila de pessoas que se tinha entretanto juntado na bilheteira e se preparava para escrever no livro de reclamações (consta que se gastaram uns três), mas decidi não me preocupar. Na minha cabeça só havia espaço para Kevin Shields. Despacho à pressa um pacote de belgas, mas mantenho a garrafa de água dentro da mochila, escondida debaixo do hoodie que tinha levado para quando fosse noite. Podia ser que não reparassem. E não repararam. Às vezes, é bom ter ar de anjinho. Fiquei a aguardar que me dessem o par de tampões para os ouvidos, habitual nos concertos dos MBV, e entrei, dando logo de caras com a imensidão daquilo: pareceram-me quilómetros, a distância entre o palco e a entrada. À volta, restaurantes, pequenos bares, um salão de jogos arcade se bem me lembro, e… poucas, estupidamente poucas casas-de-banho. Que raio?

Aproximei-me das grades habituais que separam os palcos da plebe, mas logo desisti da ideia de lá me situar: o palco estava demasiado alto. Bem tentava esticar o pescoço, mas mal se via algo que não fosse o microfone da frente. Nem pensar. Afastei-me uns quantos passos e mantive-me encostado a uma grade, a central. Sítio perfeito. Prontíssimo para ver os irlandeses, que só actuariam por volta das 20h, se não me equivoco. Antes disso, um gole de água, e os The Doups.

Não me recordo de absolutamente nada dos Doups.
Eram tão banais que os apaguei imediatamente da memória.

Mas, se algo houve que me marcou para sempre nessa noite, e que não foram os My Bloody Valentine, foram os Tara Perdida. Os Tara Perdida, uma semi-instituição do punk nacional. Os Tara Perdida, liderados pelo carismático João Ribas, dos não menos carismáticos Censurados. Os Tara Perdida, cuja “Batata Frita” é um sucesso junto do público que os ouve e não só, como o comprovam os meus amigos das claques. Os Tara Perdida deram o concerto mais execrável a que já assisti. Já vi os The Gift ao vivo. Já vi os Xutos ao vivo. Já vi bandas a destruir o seu mito em palco (Sex Pistols) e hypes a comprovarem que não são mais do que isso (Klaxons e Wu Lyf). Odiei cada instante desde que os vi subir ao palco até saírem. Não só porque estavam a queimar tempo até aos irlandeses, mas, mais, porque a música deles é uma merda. Porque a presença em palco (JR: Somos Tara! Público: Perdida!) é uma merda. Porque os fãs deles são uma merda. Eu odiei Tara Perdida. Continuo a odiar Tara Perdida. E gostava de ter a possibilidade de me drogar o suficiente para me esquecer que, alguma vez, conheci os Tara Perdida.

A espera, interminável e agravada, deu frutos. A equipa que acompanhava os My Bloody Valentine levou uns bons quinze minutos a preparar, minuciosamente, o palco (ruído daquela categoria exige muito trabalho). E depois, nova espera, já a noite batia. E finalmente, os My Bloody Valentine entram em palco sob um tímido e educado coro de aplausos.

Começando de imediato a rasgar.

Fui procurar no setlist.fm e não encontrei, mas se, bem me lembro, foi “Only Shallow” a primeira coisa que se ouviu no Algarve. E foi angelical. Sublime. Ina-cre-di-tá-vel. Todo aquele ruído a ecoar na cabeça, um pedaço de loucura hiperactiva a percorrer-me o corpo. À minha volta as pessoas olhavam, espantadas. Eu também: mas com um sorriso enorme e não como um burro a mirar um palácio. Ainda tentei experimentar ouvir sem tampões nos ouvidos, mas não aguentei. Demasiado forte para mim. Depois disso já vi os Sunn O))): não foram nem um décimo tão selvagens. Quem nunca os viu, que acredite. Isto não foi um concerto, foi uma experiência a todos os níveis. Uma morte do ego sem serem necessárias quaisquer drogas psicotrópicas. À terceira canção, já alguns miúdos puxavam dos lenços brancos, começavam a assobiar (se bem que não se faziam ouvir). Lembro-me de “Thorn” a rasgar o céu algarvio como um cometa. Lembro-me de “To Here Knows When” e do rosto lindo de Bilinda Butcher. Lembro-me de Debbie Googe, que pouco se ouvia, mas com uma presença tão incrível em palco que me levou imediatamente a querer comprar um baixo (e fi-lo, saber tocá-lo é outra história). Lembro-me de a dada altura me caírem os tampões e ter de procurá-los no chão com a luz do telemóvel durante uns segundos, depois desistindo, depois voltando a procurar, e acabando por ter de usar uns suplentes. Lembro-me de, entre canções, gritar “LOUDER!” e um grupo à minha volta afastar-se e olhar-me como se eu fosse o Charles Manson. E de um outro, alguns metros atrás, a gritar o mesmo, e a sorrir como se tivessem, como eu, encontrado a sombra de Deus no meio de uma lixeira.

E lembro-me de “You Made Me Realize”.

Os vídeos no Youtube e a versão no EP não lhe fazem justiça. Aqueles quinze minutos de noise puro a que os My Bloody Valentine chamam simpaticamente a “Holocaust Section” são de uma beleza inacreditável. É preciso ser infinitamente louco, melancólico para o dizer, mas é absolutamente verdade. Poucas coisas no mundo existirão que nos façam sentir tão vivos. Aos escolhidos, é certo. Por esta altura dois miúdos de doze anos, não mais, choravam de dor à minha frente. E eu gargalhei. Os lenços brancos eram agora um enorme mar. Gargalhei. Os My Bloody Valentine terminam tudo com a explosão final, abandonam o palco sem nada dizer. Gargalhei. Como uma criança. Tinha acabado de ver um dos melhores concertos da minha vida.

Bem sei que este texto é ridículo, mas reparem: todas as cartas de amor são ridículas. E falar destas sensações é tentar encontrar palavras que expliquem o amor como uma equação. É impossível. Só quem lá esteve poderá compreender. Só quem alguma vez assistir aos My Bloody Valentine o poderá compreender. A minha vontade é a de todos os melómanos quando falam de algo que amam: tentar levar o mundo inteiro a amá-lo igualmente. Gostava que vocês que não foram tivessem estado lá. Gostava de ter vos ter conhecido aos poucos que foram. Partilhar a experiência. Abraçar a sensação. Encher adolescentes de porrada no mosh que se seguiu, em Offspring.

Nem vou falar dos Offspring, mesmo tendo gostado desse concerto. Falo do que se passou mais tarde: duas da madrugada, sem boleia, sem táxi, sem autocarro, novos dez quilómetros a pé até à Mexilhoeira, os My Bloody Valentine e os Rallizes a ressoarem no mp3 sob um céu escandalosamente estrelado. A sede tinha regressado, mas isso já não interessava, como nada, durante semanas, interessou. E de cada vez que me recordo desta noite, interessam menos. Que grande concerto. Que grande banda. Que festival horrível. Que momento histórico.