Post-Doom? (em jeito de review a Löbo)

Diz-me a experiência que, quando uma banda adia sucessivamente a publicação de um álbum, este tende a não ser nada de especial, ou então, com sucessivos refinares da música, acabam por destruir o que ela tinha de mágico nos primeiros cuts.

Pondo isso, e como me fartei de esperar e estou com medo que o estraguem, procederei a opinar acerca do vaporware que já é o Alma EP dos setúbalenses Löbo, baseando-me apenas no download não-masterizado que tem andado a circular nas Interwebs há já uns meses.

Quando o ouvi fui sujeito (pelo menos assim me pareceu), a uma operação espiritual, a uma revelação. Adorei este álbum. Passei-me completamente. Mudou a minha vida. Obrigado Jesus. E, para o justificar, podia escrever aqui um maravilhoso elogio em estilo técnico, mas quis desta vez tentar um exercício diferente, limitando-me a verificar o seu valor através das sugestões que proporciona em cérebros diferentes.

Ouvi muitas vezes dizer que a música não pode vangloriar-se de exprimir com exactidão seja o que for, ao contrário da palavra ou da pintura. Isso é verdade em certa medida, mas não o é completamente. Ela exprime à sua maneira, e pelos meios que lhe são próprios. Na música, como na pintura e até na palavra escrita, existe sempre uma lacuna completada pela imaginação do ouvinte. Aceitando esta constatação, o meu verdadeiro objectivo teve então como alvo demonstrar que a verdadeira música sugere ideias análogas em cérebros diferentes, e, caso exista uma consonância, então é porque nos aproximámos de algum modo da imagem primordial que a banda quis transmitir na sua obra.

Começo então com a experiência nº1:
Desde os primeiros compassos, a alma do solitário áudio-viajante mergulha nos espaços infinitos. Vê formar-se a pouco e pouco galáxias e nebulosas distantes. Esta aparição define-se mais, um exercito luminoso de estrelas, trazendo no meio um vibrante pulsar, passa diante de nós. O cortejo aproxima-se; o coração exalta-se a pouco e pouco, alarga-se, dilata-se ; cede a uma adoração extática crescente, e, quando por enfim o próprio pulsar surge no meio desta procissão sagrada,perco-me, como se o mundo inteiro tivesse desaparecido/sido pulverizado de repente. Depois as chamas ardentes suavizam progressivamente o seu brilho; no meu júbilo, o exército celeste, sorrindo para a terra que abandona, regressa às alturas, desvanece-se nas profundidades do espaço, do mesmo modo como dele saíra.

Está bem. E então tu tentativa nº2?
Esta banda contém e revela um elemento místico, sempre presente e sempre oculto na sua música. Para nos dar conta do inenarrável poder deste segredo, esta começa por nos mostrar a beleza inefável do santuário, inicia-nos nos seus mistérios; faz brilhar diante dos nossos olhos o templo incorruptível, de poderosos muros, de portas de ouro, de traves de amianto, de colunas de opala, de esplêndidos pórticos que apenas estão perto daqueles que tem o coração virado para o alto. Eles não nunca nos-lo revelam na sua imponente e real estrutura, mas, como que poupando os nossos fracos sentidos, mostram-o inicialmente reflectido numa qualquer onda cerúlea ou reproduzido por uma qualquer nuvem irisada.
É de inicio uma vasta toalha adormecida de melodia, um éter vaporoso que se desdobra, para que o quadro sagrado se desenhe diante dos nossos olhos profano com um deslumbrante fausto de frequências, como se nesse instante único o edifício sagrado tivesse brilhado diante dos nossos olhos ofuscados, em toda a sua magnificiencia luminosa e irradiante. Mas a viva cintilação, levada gradualmente aquela intensidade de irradiação solar, extingue-se rapidamente, como um clarão celeste. O transparente vapor das nuvens fecha-se, a visão desaparece a pouco e pouco no mesmo incenso matizado no meio do qual aparecera, tornado mais etéreo ainda.

Tenho amigos poetas. Ser-me-á permitido, também a mim, descrever em palavras a tradução inevitável que a minha imaginação fez desta peça quando a ouvi pela primeira vez, e me senti por assim dizer, arrebatado?

Sim, é, na experiência nº3:
Lembro-me de que, logo aos primeiros compassos, senti uma daquelas impressões que todos nós conhecemos, pelo sonho, durante o sono: libertado dos laços da gravidade. O estado de homem absorto numa grande fantasia num estado de absoluta solidão, mas uma solidão com um imenso horizonte e uma vasta luz difusa; a imensidade sem outro cenário alem de si mesma. Não tardei a experimentar a sensação de claridade mais viva, de uma intensidade de luz que crescia com tal rapidez que as tonalidades fornecidas pelo dicionário não bastariam para exprimir este acréscimo sempre renascente de ardor. Concebi então plenamente a ideia de uma alma que se movia num meio luminoso, de um êxtase feito de volúpia e de conhecimento, e que planava bem acima do mundo natural.

Nas três traduções encontramos creio uma sensação de isolamento, de contemplação de qualquer coisa infinitamente grande e infinitamente avassaladora; de uma luz intensa que cativa os olhos e a alma ate ao desfalecimento; e, por fim, a sensação de espaço dilatado até aos últimos limites concebíveis. Hmm.. acho que tais semelhanças justificam o objectivo a que me propus.

Continuando em notas pessoais, desde o princípio que uma consideração me tinha impressionado vivamente nesta música: a mesma ambição, a mesma escalada titânica e também os mesmos refinamentos e a mesma subtileza. Esta música é toda ela a subsunção de um espaço gigantesco, uma liberdade maior e uma expressão mais intensa que insufla algo de místico onde Tool insufla algo de humano (existe uma correlação entre as duas bandas, digo eu).
Alguém no Last.fm classificou esta banda de “post-doom”. Nunca tinha ouvido falar deste epíteto, mas pode bem ser que o género nasça com eles. São senhores de uma linguagem nova que expande e enriquece o léxico doom com uma linguagem própria, com um requinte e uma subtileza muito especial que jorra forte e soberba e se expande livremente em jornadas espirituais, numa linguagem visionária mas tranquila. Não possuem grandes impulsos emotivos súbitos nas suas composições, atingindo sempre a plenitude no desenvolvimento de um tema, e, se por vezes lhes escapa a construção, possuem o segredo desses vislumbres e desses requintes no pormenor da harmonia. As cordas flutuam num espaço sem fronteiras mas que nos envolve de um perfume misterioso e de uma atmosfera quente que o teclado contribuiu também para criar. Cada música constitui um mundo acabado. Preocupam-se menos com a descoberta de melodias do que com a criação de um ambiente cintilante e misterioso, de submissão alquímica em que cada acorde tem a sua cor, cada um o seu sabor. São construções sólidas, e que no entanto desaparecem sob linhas envolventes, evocando e sugerindo o pensamento mais do que o exprimindo, em encadeamentos harmónicos que subitamente nos transportam de um tom para outro numa subtil arte de modulação, porem clássica, equilibrada, velada por aparências imprecisas, voluptuosas, uma arte íntima, toda em profundidade, mas proporcionada, clara, de encanto grego.

Nenhuma banda é superior a estes moços a pintar o espaço e a profundidade, materiais e espirituais. Eles possuem a arte de exprimir, através de subtis gr
adações, tudo o que há de imenso. Por vezes parece, quando ouvimos esta música ao mesmo tempo ardente e fátua, que reencontramos, pintadas sobre o fundo das trevas rasgado pela fantasia, as vertiginosas concepções do ópio. Através de um processo que aplicam de um modo totalmente imprevisto, conseguem alargar o império e as pretensões do que eu achava que era efectivamente doom.