Quem tem medo de Peter Brötzmann?
Alguns minutos de atraso, mais precisamente 21h17 de sexta-feira, Peter Brötzmann adentrou o palco seguido por Steve Noble e John Edwards. Era o primeiro concerto de três programados para o trio na cidade. Noble tinha estado no mesmo Sesc Belenzinho há apenas cerca de um mês, acompanhando Alex Ward. Edwards veio a São Paulo um ano atrás, com o Stellari String Quartet, no CCSP. Agora os dois instrumentistas britânicos se uniam a um dos mitos maiores da free music.
Todos os olhos se debruçam sobre o senhor alemão de longos bigodes e curto cabelo embraquecidos, que entra em silêncio, sem mirar o público, sem nada dizer: Brötzmann, além de ser a figura central da noite, era o que há mais tempo não aparecia – na verdade, tocou no país apenas em uma oportunidade, em junho de 2008. Expectativa latente, no ar, pontos de tensão paupáveis em meio ao público. Como é característico em um concerto que tem por base a improvisação livre, ninguém podia prever ao certo o que presenciaria naquela noite. E o trio é um projeto recente dos músicos, tendo se reunido pela primeira vez em 2010 e, desde então, tocado em poucas ocasiões – cada um de seus integrantes mantêm múltiplos projetos e agendas, há poucos registros dos três em ação conjuntamente.
Em um dos cantos do palco, quem ia adentrando o teatro podia visualisar uma pequena mesa sobre a qual uma discreta iluminação revelava o arsenal de Brötzmann: sax alto, um ‘silver’ clarinete e o tarogato, elegantemente acomodados lado a lado. Quando o músico adentrou o palco, trazia o sax tenor dependurado no pescoço. Sem muita demora, os três se acomodam em seus lugares, se entreolham discretamente e, sem dirigir uma palavra ao público, iniciam um longuíssimo diálogo, concentrado em 56 minutos, concerto ininterrupto, sem pausas ou refrões, música a se desenvolver em ondulações cíclicas entre passagens de agudo foco energético pontilhadas por momentos de sonoridades mais detalhísticas e até, surpreendentemente em certo sentido, contemplativas – como a sequência final com Brötz ao alto.
Brötzmann deu início à noite com um chamado ao tenor, ao qual se acoplaram simultaneamente Edwards empunhando o arco e Noble com robusto ataque percussivo. Edwards parecia o mais excitado dos três. Desde a abertura, tratou o baixo de forma íntima e agressiva, acariciando-o e atacando-o, arco e pizzicato alternados, olhos fechados, movimentos frenéticos de cabeça e braços. Impossível imaginar um motivo qualquer para vislumbrar outro baixista em ação naquela noite. Noble já havia impressionado o público em junho quando tocou com Ward: sóbrio, discreto, de gestos que não denotam a fúria de sua pegada, Noble utiliza os recursos da bateria no limite, lidando com ampla variedade de baquetas, chocalhos, pratos, gongos, fazendo com que a cama percussiva se torne um jogo de multiformes marcações poliritmicas. Em diferentes momentos da apresentação, em meio a picos de êxtase e turbulência, era difícil não questionar como que aquele trio, que espaçadamente se reúne, podia soar tão uno, tão telepaticamente integrado, condutor de uma música que por vezes extrapolava os ouvidos e reverberava outros cantos, o corpo querendo se mover, os pés a tremerem.
Brötzmann já está com 71 anos. É nítido que seu fôlego não mantém a mesma potencialiade que exibia até ao menos uma década atrás, mas sua forma ainda é luminosa, de incandescente capacidade criativa. As frases estão mais quebradas, pausadas, e seu lado lírico, por vezes até melancólico, se mostra mais presente. Ao tarogato, em especial, seu tom atual demonstra encontrar talvez seu ponto máximo. Ao tenor, seu instrumento-chave, provavelmente o pulmão não possa mais segurar os grandes blocos vulcânicos de notas que fizeram sua fama. Mas ele não se tornou apenas um reflexo do que já foi, como ocorreu com outros grandes, basta ver Ornette Coleman ou Pharoah Sanders. O músico alemão mantém a verve e a inquietude que o colocaram como figura central das artes nas últimas décadas, ainda pode fazer os ouvidos se perderem em sua sonoridade sem concessões.
A entrada final de Brötzmann, que por breves momentos ficou ao canto apenas observando seus parceiros, foi conduzida por um feroz sax alto, com o qual deu seus últimos arroubos enérgicos, que logo se diluíram, até alcançar um processo meditativo, que marcaria os derradeiros cinco minutos de concerto, dos quais emergiram dois temas sutilmente perdidos, o brilhante “Hard Times Blues” (interpretação definitiva no álbum “Medicina”) e “Song for Fred” (que tem encantadora versão no exótico “A Night in Sana’a”). Brötzmann encerrava ali, quase em silêncio absoluto, sua primeira noite em SP. Após 56 minutos de música sem cortes, Brötz se dirigiu ao microfone pela primeira vez, agradeceu, disse ser bom retornar à cidade, apresentou seus parceiros e convidou o público a retornar para os outros concertos, nada de bis ou tentativas de ser simpático. O que importava era apenas a música. A música de Brötzmann e nada mais.