Saiu para comprar cigarros e nunca mais fumou: Para o Aki Kaurismaki

Para o Aki Kaurismaki:

Aki Kaurismaki, o realizador do filme “Le Havre” estreado há poucas semanas nos nossos cinemas, afirmou numa entrevista a um jornal português que “achava” que tinha visto a saudade. Disse “achava”, porque só os portugueses a podem saber. Esta história sobre a saudade já é velhinha, mas há dados novos. O finlandês, que mora em Viana do Castelo desde 1989, viu a saudade quando se deteve a observar dois homens que, separados por pouco metros miraram o mar durante longos minutos, sem quase dizer palavra. Reflectiu no final que “a melancolia finlandesa é quase a saudade, mas não totalmente”.

Quando li esta entrevista tinha voltado da Finlândia há pouco tempo, e trazia comigo a ideia de que há muitas mais semelhanças entre os dois povos do que as diferenças físicas podem fazer querer parecer. Não tinha falado disto a ninguém desde que regressei, mas depois de ler a sua entrevista não resisti à vontade de escrever estas linhas.

Ao contrário do realizador nórdico eu (re) conheci a saudade na sauna de uma residência universitária de Helsinki. Para quem não sabe, as saunas são locais sagrados para os finlandeses, muito mais do que os templos protestantes minimalistas (fica para uma segunda crónica). Não o admitem claro, mas é verdade. O filme documentário “Steam of Life” capta eficazmente o fenómeno, os homens usam as saunas para partilhar mágoas –a melancolia e tristeza dos olhares partilham espaço com o vapor, e para se autoflagelarem com o calor que cada jacto de água despejado na caldeira faz ressoar.

Nessa minha primeira experiência de sauna nórdica, cheguei ao balneário e vi, ao fundo, entre vapores, num cubículo de madeira e vidro, as cabeças de quatro homens. Eu, seguindo as indicações da minha namorada finlandesa fiz-me acompanhar de uma bebida de gim (Long Drink), típica para estas ocasiões. Despi-me e entrei. Quando abri a porta de vidro, reparei que era o único presente que, para além de levar uma lata (amarela), estava nu. Os quatro homens usavam uma toalha a tapar a santíssima trindade (Gore Vidal chama-lhe assim) e ninguém tinha bebidas. Neste tipo de situações de intimidade forçada – rodeado por quatro homens, acompanhado de uma lata amarela e estando nu – o melhor é sorrir, agir naturalmente e não virar as costas. Sentei-me com o gim entre as pernas e encostei-me a um canto, o único espaço ainda livre.

Quando a vergonha desapareceu e consegui finalmente levantar os olhos, reparei que todos encaravam o chão, olhares e posições fixas, como num museu de cera.

Terminado o gim, passei a fixar-me também no chão, mas pouco depois não aguentei e decidi meter conversa. Perguntei a um jovem forte e cabeludo ao meu lado se era sempre assim, se sempre que se juntavam ali passavam o tempo a mirar o chão, em silêncio.

Sorte ou azar, a sauna estava reservada naquele dia a outsiders da universidade e ninguém falava inglês.

Olhou para mim, disse duas palavras imperceptíveis e voltou a olhar para o chão. A temperatura, à mercê da água despejada, ia subindo aos soluços e era a minha única distracção, pois ninguém falava, sequer olhava para mim para me dar a chance de pelo menos sorrir. Pouco depois, houve alguns comentários, um diálogo de pouquíssimas palavras que durou poucos minutos e onde ninguém nunca olhou ninguém, todos fitavam o chão em transe.

A ausência, ou a lamentação dela, é a característica forte da saudade tão portuguesa e eu tinha acabado de a (re) conhecer nos olhares de uns homens altos, louros e de olhos azuis.

Kaurismaki, o que experimentei naquela sauna – mesmo nu e vestindo uma lata amarela – foi exactamente o mesmo que já senti e vi em Portugal, com a diferença de que uns fitam o mar, e outros o chão, mas de que o silêncio da ausência infinita é o mesmo.

Uma autoflagelação de vez em quando, seja de calor ou saudade, nada contra, mas tenho os meus limites e por isso, quando as temperaturas começaram a aproximar-se dos 100 °C, fui o primeiro a sair. Tomei banho, vesti-me e preparei-me para os gélidos -6°C exteriores. Já lá fora e caminhando para casa, fui procurando no chão, entre neve e gelo, entender os meus amigos finlandeses. Tudo ficou mais fácil quando reparei no mar que estava poucos metros à minha esquerda.