Taking the long way home… through London. Again.

Há uns anos atrás, quando ainda não fazia de Londres uma paragem regular nos meus desvios a tomar o caminho mais longo, fazia-me muita confusão a postura meio desleixada dos meus amigos em relação aos concertos.

Eu: “Então, ansioso para o concerto dos <banda absolutamente indispensável>?”
Amigo desleixado: “Ah, é hoje, não é? Li isso em qualquer lado.”
Eu: “Como assim? Não tens bilhete ainda?”
Amigo desleixado: “Acho que não vou, torci um dedo a abrir uma cerveja e ainda por cima joga o Arsenal hoje e está frio. Fica para a próxima vez que vierem cá.”
Eu: “????”

Isto era um modelo de conversa que acontecia com frequência. Tudo bem, eu já sabia que lá há muita coisa a acontecer e tudo o mais. Mas mesmo assim fazia-me confusão. Até ter começado a lá ir. É um disparate (tal como outra qualquer metrópole do género que seja paragem obrigatória das bandas do nosso “universo”, não é um exclusivo de Londres em si, mas adiante), e tem alturas de tamanho excesso que nos podemos dar ao luxo de organizar o nosso próprio festival pessoal. Foi o que fiz em Dezembro de 2010, período durante o qual até esbarrei com alguns amplificasónicos numa das datas do meu festival. É isso, o meu festival. Já que ninguém me satisfaz plenamente, faço eu um. Imaginem lá, um eventozinho de quatro dias com os Wolves In The Throne Room, os Shrinebuilder, os Cathedral, os The Young Gods, o Daniel Higgs e os Neurosis a fechar tudo em beleza? Era o meu festival, fi-lo eu, e foi melhor do que muitos daqueles já pré-fabricados.

O primeiro dia do meu festival foi a 2 de Dezembro, no Scala. Era um daqueles eventos ATP Presents, começava cedo, e estavam uns -6º a gelar-nos os ossos enquanto esperavamos na fila cá fora. Sim, porque o meu gangue era composto por gente daquela obsessiva que não quer correr o risco de chegar atrasada a nada (sem julgamentos – eu sou assim também), e então tivemos uma meia horinha de observar o nosso bafo a congelar meio segundo depois de abandonar a nossa boca, atolados numa poça de neve. Londres inteira era uma poça de neve nessa altura, aliás. Um pouco antes de entrarmos, saiu do edifício o Wino com o olhar lancinante de um músico em digressão que precisa de ir jantar agora, mas mesmo assim ainda teve tempo de dizer um olá, olhando para mim com aquela cara de “és aquele gajo que dormiu no meu quarto noutro dia, não és?”. É uma outra história que eu depois conto (prometo).

Lá derretemos a camada gelada e explorámos um bocadinho o Scala, que é um sítio bem giro, com pilares enormes e mármore branco a darem-lhe um ar de gradiloquência antiga, e um interior estranhamente fabril que acaba por ser bastante acolhedor. Um dos bares até está isolado da sala em si por paredes de vidro, para quem gosta mais de beber copos sem estar a ser incomodado pelo concerto que pagou para ir ver. E há muitos desses. Do meio da escuridão, irromperam os Wolves In The Throne Room, em versão trio, que deram um concerto de ambiente ritualista, cheio de velas e de fúria. De seguida, num cartaz, diga-se, meio incongruente (são normalmente os melhores), os Shrinebuilder deram um dos melhores concertos da sua existência, incomparavelmente melhor que, por exemplo, o do Roadburn alguns meses depois. Foi daquelas alturas em que tudo parece alinhar-se, e até o Scott Kelly veio para a frente do palco juntamente com o seu considerável depósito em modo de quase-guitar hero, sacando riffs com ar de sofrimento intenso, uma visão estarrecedora e estranhamente imponente. Tocaram o disco quase todo, e ainda ‘We Let The Hell Come’, um tema inédito ainda hoje, que brevemente poderão ouvir num contexto ligeiramente diferente.

O segundo dia do meu festival foi na O2 Islington Academy, com os The Young Gods, uma daquelas bandas que tem sempre que se ir ver, independentemente do tempo que faça ou de quem joga. Não há desculpas. E até estava menos frio do que no dia do Scala. Como bom segundo dia de festival que se preze, havia umas bandas de abertura nas quais cagámos de alto. Sem desrespeito. Não estava a trabalhar, não me interessavam, e estava mais preocupado com as bebidas que partilhei com o grande Jonathan Selzer, actualmente editor da Subterranea (sub-revista da Metal Hammer), uma das melhores pessoas do mundo, cuja opinião musical é para mim uma verdade suprema, e a quem devo grande parte do que sou hoje.

Na verdade, acabei a partilhar bebidas com muito mais gente – há nos concertos dos The Young Gods um certo ar de acontecimento social, muito mais do que em concertos “normais”, e era possível encontrar uma grande parte do who’s who da cena musical mais alternativa de Londres naquele espaço totalmente cheio, abafado e ainda assim boa-onda da Academy. O backstage é numa cave labiríntica, que me pareceu ter que descer durante largos minutos para atingir (retirando o coeficiente cervejal, foram provavelmente meia dúzia de lances de escadas), uma tortuosa viagem que valeu a pena para dar um abraço ao Franz, que tinha entrevistado dias antes a propósito do recém-lançado, na altura, ‘Everybody Knows’ (do qual interpretaram vários temas que resultam esplendidamente ao vivo) e mais uma vez agradecer pela existência do tema ‘Envoyé!’, também tocado durante o concerto estrondoso.

Os headliners do meu festival foram os Neurosis, maravilhosamente coadjuvados no Koko de Londres pelo desconcertantemente genial Daniel Higgs (que, por ele, ainda lá estava hoje a falar, não fosse um senhor avisá-lo durante a sua já longa actuação que se calhar os Neurosis também ainda gostavam de tocar um bocadinho), e disso já há pouco a falar. Já escrevi sobre a experiência, já a revivi centenas de vezes na minha cabeça, já me disseram que andei à cabeçada às colunas, já me belisquei várias vezes a ver se não acordo e afinal não vi a ‘Locust Star’ e a ‘Through Silver In Blood’ ao vivo, portanto, já não consigo mais. Foi um concerto of a lifetime, a seguir ao qual parecia não haver mais nada de relevante a cumprir. Saí, comprei o disquinho de Tribes Of Neurot que me faltava, enfiei-me no metro em direcção ao aeroporto e pisguei-me para casa, em silêncio.

Então e os Cathedral, perguntam vocês? Esqueci-me de falar neles ou quê? Não, é que não fui. A neve estava a derreter e era escorregadia, e havia cricket na televisão, acho eu, e coiso. Sei lá, não me apeteceu. Aquele desleixo pega-se, rapidamente.

 

PS. Para a semana não estou cá. Vou andar perdido pelos caminhos mais longos para depois vos contar tudo de hoje a quinze dias.