Taking the long way home… through London.

Money’s just something you throw
Off the back of a train
Got a handful of lightning
A hatful of rain
And I know that I said
I’d never do it again
And I love you, pretty baby, but I always take the long way home.

…diz o Tom Waits, naquele que bem poderá ser o tema que vou querer em repeat no meu velório (que tome nota, quem estiver a pensar organizar isso), e o que o Tom disser, para mim está bom. Claro que o Tom também diz coisas como Well I hung on to Mary’s stump / I danced with a soldier’s glee / With a rum soaked crook / And a big fat laugh / I spent my last dollar on thee, mas quem segue o senhor há uns tempos sabe bem que ele às vezes sabe ser chalupa só para brincar connosco com um brilhozinho traquinas nos olhos, e outras vezes a maluquice sai-lhe mesmo das arrecadações mais escondidas do coração. A ‘Long Way Home’ é destas últimas, e até parece cripticamente auto-biográfica. Mais do que isso, facilmente se adapta e se torna igualmente biográfica para quem quer que partilhe dessa tendência a não ir sempre directamente para casa. É a fugir à estrada directa e rectilínea que vai ter à porta de casa em cinco minutos, nos desvios pelo meio da mata, pelas estradinhas secundárias, por becos e ruelas sem nome, que descobrimos as coisas que, às vezes, até nos fazem esquecer de que estávamos a caminho de casa in the first place. E, depois do primeiro desvio, bem podemos prometer que nunca mais o fazemos, que é escusado – o vício já está entranhado irremediavelmente.

E pronto, é esta metáfora atabalhoada que tenho usado para, essencialmente, explicar às pessoas “normais” a minha vida. E não só – até serve, no meio musical, que é o que nos interessa mais aqui, para explicar porque é que cada vez acho menos piada ao festival das 100.000 pessoas e cada vez gosto mais do festival das 100 pessoas. Cada vez evito mais os Wackens, os Hellfests ou os Alives desta vida (com todos os seus méritos inegáveis, eu até já fui a vários do género e gostei, <inserir diplomacia>,<mais diplomacia>, etc), e faço por partir à descoberta de ajuntamentos musicais mais pequenitos, em sítios mais recônditos, com artistas mais invulgares a animarem públicos mais estranhos (é inevitável). É com relatos semi-aleatórios de episódios ocorridos durante desvios meus por caminhos laterais desses que vos vou atormentar nos próximos tempos, e como o preâmbulo já vai longo, o desvio de estreia é um dos mais curtos: o festival Seven Churches.


A primeira e, até agora, única edição do Seven Churches, festival underground de um dia ocorrido em 25 de Junho de 2011, não foi em Timbuktu, nem envolveu nenhuma aventura magnífica para lá chegar. A única aventura foi a do costume, em Londres – era um dos dias mais quentes das últimas décadas na capital inglesa, e havia obras não sei onde, e… coiso. Há sempre qualquer coisa a acontecer em Londres que faz com que o trajecto do ponto A para o ponto B nunca demore menos de 45 minutos se se tiver a triste ideia de ir de carro, quase independentemente da localização específica do ponto A ou do ponto B. Nunca o factor are we there yet? foi tão presente. Felizmente, ainda assim chegámos cedo, ao sugestivamente intitulado Fighting Cocks, em Kingston, no Sudoeste de Londres, que não é mais que um pub bem giro (ora vejam) com uma sala meio cavernosa nas traseiras, escura, pequenina, mas com um bom ambiente inexplicável – imaginem que a salinha de concertos da Fábrica de Som era uns quinze metros mais longa e estão quase lá. Mesmo que tivessemos chegado tarde, nunca estaríamos atrasados, porque na minha companhia iam os próprios organizadores do festival, dois amigos que fizeram questão de me meter nisto. No mesmo dia, outro grande amigo comemorava o seu 40º aniversário em Portugal… lá está, I love you, pretty baby, but I always take the long way home.

O cartaz do Seven Churches foi sofrendo algumas alterações até à sua versão final (deixando até aquele cartaz genial cheio de bicheza meio obsoleto pelo caminho, mas é tão bom que tinha que ser postado de qualquer maneira), mas acabou por apresentar uma respeitável molhada de talento que representa o que de melhor se faz de javardice subterrânea no Reino Unido – Dopefight (que tocaram primeiro porque ainda iam dar outro concerto à noite!), Rise Of The Simians, Bast, Undersmile, Bong, Winterfylleth e Black Sun. Dada a natureza minúscula do sítio, os músicos (e não só os que iam tocar – o Adam Richardson, dos Ramesses, andava lá pelo meio, por exemplo) deambulavam pelo meio dos meros mortais, todos unidos pelo desiderato de consumir uns pints quando não havia barulho a vir do palco. Das memórias (possivelmente parcialmente deturpadas) que tenho de um dia longo, extenuante e estupidamente divertido, realço:

a revelação que foram os Undersmile. Banda que tinha conhecido nessa manhã através do único EP que tinham na altura e que me tem impressionado forte e feio desde então. Há de tudo nos Undersmile: temas que nunca mais acabam, senhoras de vestido que meio gemem, meio cantam, uma secção rítmica capaz de causar problemas intestinais, e o fantasma do grunge a ser analmente molestado pelos Electric Wizard e pelos Swans ao mesmo tempo. Acabaram de lançar o seu primeiro álbum, ‘Narwhal’, que vivamente recomendo, e aqui fica uma prova da devastação que trouxeram ao Seven Churches:

o fundo em zebra do palco do Fighting Cocks. Não é giro?

o guest star. Encontrava-me presunçosamente, armado em estrela, numa rodinha de conversa com o David Terry, dos Bong, que discutia alegremente a prática agrícola em Newcastle e com o Chris Naughton, dos Winterfylleth, que acumulava na altura funções de escriba na Terrorizer, quando o Russell MacEwan, o grande Drum Major, baterista e líder dos Black Sun, se aproximou de mim conspiratoriamente. “José, do you like AC/DC?“, perguntou. Até aqui, tudo bem. Fiquei apreensivo com o rumo que isto poderia tomar, mas após resposta afirmativa, nova questão: “Do you know the lyrics to Dirty Deeds Done Dirt Cheap?”, indagou, com o seu irresistível sotaque escocês. Sei, por acaso até sei, sem ser grande armazenador do liricismo rude dos AC/DC, essa até está cá dentro. O problema foi a terceira pergunta. “We’re playing it tonight, do you want to sing it with us?” Ora, há uma razão para eu ter esta relação de intimidade quasi-pornográfica com a música e não fazer mais nada por ela do que escrever e tirar umas fotos. Quem me ouviu alguma vez cantar e já concluiu a subsequente terapia, sabe do que falo, quem não ouviu, que se conte por feliz. Declinei amavelmente o convite, obviamente. Infelizmente, esta conversa foi tida logo a seguir aos Dopefight, a seis bandas e várias horas de distância de os Black Sun entrarem em palco. Recordo que fazia calor e que as bebidas estavam fresquinhas. Quando dou por mim, estou não só agarrado ao microfone a cantar, efectivamente, o tema em questão, como, igualmente, a berrar todos os temas dos Black Sun como se o mundo fosse acabar amanhã. O meu caro Antony Roberts fez questão de imortalizar as lamentáveis cenas.

O mundo não acabou, mas foi por pouco. Desde então, não houve mais nenhum Seven Churches, nem nenhuma banda mais me pediu para cantar com eles. Não há coincidências. Ainda assim, consta que uma segunda edição está a ser vagamente planeada, e agora já ninguém tem desculpa para faltar. Os vôos são baratos, a coisa faz-se num dia, e se forem todos para cima do palco aos gritos, eu até sou gajo para ir outra vez. Com companhia tem mais piada. É que até o Tom acaba a tal canção a dizer come with me, together we can take the long way home.