Taking the long way home… through Neskaupstaður.
Hví svo þrúðgu þú
þokuhlassi
súldanorn
um sveitir ekur?
Þér man eg offra
til árbóta
kú og konu
og kristindómi.
— Jónas Hallgrímsson, 1826-8
Como já deverão ter percebido pela paisagem e pelos caracteres marados que requerem saber códigos ASCII ou fazer copy/paste só para escrevermos correctamente os nomes dos sítios e das pessoas, desta vez o desvio foi grande. Foi quase como se andasse especificamente à procura do sítio mais remoto possível só para depois contar aos outros que lá estive. Para terem uma ideia, Neskaupstaður é um sítio remoto da Islândia, que por si só já não é exactamente ali ao virar da esquina. É na ponta oposta da ilha a Reykjavik, e das duas uma – ou se apanha um Fokker daqueles ainda com hélices para lá chegar, ou se vai de carro durante 700km das paisagens mais surreais que se possa imaginar. É o tipo de sítio que vale a pena ir mesmo que não aconteça lá nada, que é o estado normal da coisa durante 363 dias do ano. Nos outros três, no entanto, os 1437 habitantes vêem-se “invadidos” por uma horda bem superior à sua população total, para o grande evento do underground islandês – o Eistnaflug.
Era precisamente neste rico sítio que me encontrava a semana passada, já pela segunda vez, e a vista do quarto de onde vos escrevia (que se encontrava no primeiro andar do próprio recinto do festival) era sensivelmente essa da imagem em cima, só que um pouco mais acima. Quase que apetece dizer que não interessam para nada as bandas, porque mesmo que até aparecesse lá a Björk aos guinchos, essa exportação abjecta e aberrantemente popular do país dos vulcões (se alguém quiser tentar “explicar-me” a Björk, agradeço – many have tried, all have failed), íamos adorar o festival na mesma. Há algo meio juvenil que acorda na nossa cabeça quando nos vemos num sítio destes, com uma paisagem destas, com umas condições destas (nesta altura do ano, o dia dura 24h – sim, nunca anoitece), uma espécie de disbelief que é difícil anular, algo semelhante a uma voz de quatro anos de idade que repete incessantemente “estás na Islândia, estás na Islândia, estás na Islândia!” e que torna tudo fascinante. É difícil pensar num sítio com uma beleza natural mais pujante e mais constantemente in-your-face do que este país, muito especialmente se se fizer a odisseia de guiar até lá. São uns 800km para cada lado, de preferência uma viagem pela estrada Sul e outra pela estrada Norte, para se ver tudo, mas vale a pena. E acordar com uma paisagem daquelas à frente cura qualquer ressaca. Enfim, a maior parte delas, pelo menos. A maravilha do Eistnaflug é que, apesar da ligação umbilical que tem com esta pequena cidadezinha, mesmo que fosse feito numa cave em Xabregas – sem desprimor para essa belíssima localidade – continuaria a ser um grande festival.
Meio à medida do que tenho visto acontecer com estrangeiros que vêm a qualquer evento onde proliferam bandas portuguesas de qualidade, a descoberta do underground islandês é uma revelação enorme. Confesso a minha ignorância – antes de me mandar para o Eistnaflug 2011, o meu conhecimento da cena alternativa/metal da Islândia, à parte da guinchadeira e dos Sigur Rós de domínio público, resumia-se aos Sólstafir e aos Celestine, e aos lendários Sororicide dos tempos do tape-trading. Desde então, nomes como HAM (uma espécie de Xutos, mas em bom, da Islândia), Beneath (a banda actual de Gisli Sigmundsson dos… Sororicide), Muck (screamo amalucado), Gone Postal, Angist, Ophidian I (todos death metal de diferentes estirpes, todos do melhor que se faz por aí), Momentum (os Mastodon da Islândia) ou The Vintage Caravan (putos imberbes a fazerem stoner clássico como se tivessem 45 anos) entraram não só no meu léxico como também na minha dieta musical, à força de prestações sublimes e discos que, apesar de ignorados pela generalidade do velho continente, têm valor para rivalizar com qualquer nome grande. Na verdade, a comparação é constante e pertinente – com a diferença da insularidade, que para eles é literal e para nós (em Portugal continental, pelo menos) é figurativa, mas ainda assim com efeitos práticos semelhantes, o underground islandês tem muito a ver com o português. O selling point é o mesmo – temos cá bandas excelentes, venham descobri-las!
No que diz respeito ao festival propriamente dito, é de uma boa onda difícil de acreditar. Os bêbados islandeses são pacíficos e extrovertidos, não criam problemas e ainda proporcionam cenas curiosas pela sua inocência e boa índole. Na semana passada, um deles pôs na cabeça que eu era dos Cephalic Carnage (uma de duas bandas não-islandesas no cartaz deste ano, de entre um total de 41 – é obra!) porque me ouviu falar inglês ao passar por mim. Naturalmente, dada a quantidade de cerveja que é ofertada aos membros da imprensa pela organização do festival (só de ver o nome Tuborg escrito em qualquer lado ainda fico meio zonzo), achei que tinha piada alinhar nisso, e disse-lhe que era o “teclista” dos Cephalic Carnage, o que deixou o puto em êxtase. No dia seguinte, voltou a passar por mim e a urrar “CEPHALIC CARNAAAAGE” enquanto fazia o símbolo universal dos \m/. Tive pena dele e expliquei-lhe, por termos mais suaves, que tinha estado só a enxovalhá-lo no dia anterior e que não, não sou nada dos Cephalic Carnage. Nem ferrinhos eu sei tocar. Ele olhou para mim e disse-me que sou igualzinho ao baixista (o Marc Grabowski, que anda actualmente em tour com eles, e não o habitual Nick Schendzielos). “Pois, mas não sou,” insisti. Depois de mais uns segundos de pausa, pergunta-me: “Mas posso tirar uma foto contigo na mesma?” E tirou. Provavelmente já a mostrou aos amigos a dizer que esteve com o baixista dos Cephalic Carnage, e dependendo do nível de conhecimento que os amigos terão da banda, ter-lhe-ão respondido “fixe!” ou então “és um bêbado do pior.” Tirando estes episódios pontuais, é pessoal que prima pela timidez. Momento particularmente hilariante, em 2011, quando num meet&greet supostamente combinado para as bandas falarem com membros da imprensa internacional (gente da Terrorizer, Metal Hammer e Zero Tolerance não aparece no cu da Islândia todos os dias, afinal), apareceu um total de… zero pessoas. Este ano, lá vieram alguns falar connosco, mas ainda um bocado a medo. Deu para trazer uns discos novos para casa, dos quais certamente irei falar nos próximos tempos.
Também é frequente, qual Roadburn, ver os elementos das várias bandas no público. Lá andavam quase todas, em 2011, aquando do concerto dos tais míticos HAM, pelo meio de stagedivers constantes e miúdas já sem soutien (sem exageros), a curtir desmesuradamente. Tal é a integração bandas+público, que também os músicos são dados aos disparates normalmente reservados aos miúdos – já é, por exemplo, uma tradição que o Guðmundur Óli Pálmason, baterista dos Sólstafir regularmente conhecido como Gummi, corra nu pelo cais de Neskaupstaður e se atire ao rio no final de cada edição do festival. O cais, este ano, estava encerrado e em obras, e correm rumores de que foi a única maneira que a junta local arranjou de o impedir. Já agora, não resultou. E o pior é que ele volta todos os anos… segundo consta, a organização já nem se dá ao trabalho de convidar a mais popular banda de rock islandesa do momento para o Eistnaflug. Diz o vocalista Addi que “vemos o nosso nome no cartaz todos os anos e aparecemos nesse dia.”
Último pormenor delicioso – a uns metros do Egilsbud, local do Eistnaflug, fica uma antiga metalúrgica abandonada que foi ocupada por artistas para exposições e outras actividades, onde durante o festival vão tocando algumas bandas ainda menos conhecidas, uns punks adoidados e alguns concertos especiais, como foi o caso dos Sólstafir a tocarem coisas antigas este ano ou os Norn a praticarem um ritual satânico que depois levou a multidão a sair em cânticos tenebrosos pelas ruas. Chama-se Enter The Mayhemisphere e também se pode lá ir fazer corpsepaint à borla. A sério. Vá lá, estamos a falar de um país que tem um sítio chamado…
Querem umas fériazinhas turísticas apimentadas por uns concertos amalucados? Querem descobrir um país daqueles que depois dá gozo exibirmo-nos perante os amigos que fomos lá? Querem descobrir uma cena musical totalmente nova, recheada de bandas de quem nunca ouviu falar? Mandem-se ao Eistnaflug. Vale mesmo a pena. E sempre é melhor 24/7 de dia do que 24/7 de noite, que é o que acontece ali durante umas semanas em Dezembro, e que muito terá a ver com a maneira como funciona a cabeça destas pessoas. Atentem bem na tradução daquele poema ali do princípio:
Goddess of drizzle,
driving your big
cartloads of mist
across my fields!
Send me some sun
and I’ll sacrifice
my cow — my wife —
my Christianity.