Taking the long way home… through Stolzenhain.

Beware the lollipop of mediocrity: lick it once and you’ll suck forever.
–Brian Wilson

 

É com o coração pesado que vos escrevo estas linhas. Como espero que o meu reduzido talento literário tenha sido suficiente para que já tenham percebido pelos posts passados, isto para mim ainda é tudo entusiasmo. A postura que adopto ao falar-vos destes pequenos festivais, em bons sítios cheios de boa música, boa gente, bons copos, é uma postura meio adolescente de “isto é tão fixe, venham comigo ao próximo!”. Aconteceu a semana passada alguém me perguntar se eu ia à Alemanha em trabalho ou só por diversão, e honestamente fiquei na dúvida. Respondi, “os dois!”, porque é mesmo isso que se passa. Sim, fui trabalhar, fui reportar sobre um evento para duas revistas, vou ter que escrever umas centenas de palavras sobre tudo o que vi, e tive que alombar com a máquina fotográfica às costas e vou ter que tratar umas dezenas de fotos. Mas foi tão bom estar naquele ambiente durante aqueles dias, que nada disso parece sequer trabalho.

Pois bem, o South Of Mainstream já não vai ser daqueles que vos vou desafiar a lá ir comigo. Conforme anunciado pelo heróico organizador (e dono da editora Exile On Mainstream, e também antigo vocalista dos doomsters Shepherd) Andreas Kohl no final dos concertos, a edição de 2012 foi a última do South Of Mainstream. Depois de anos a montar, com uma reduzida equipa, um festival basicamente perfeito, tanto em termos de localização, como de ambiente, como de cartaz, o Andreas foi mais um, poucos dias antes da essencial Hydra Head ter anunciado o trágico fecho de portas, a ter que baixar os braços, face à falta de apoio que se vive no underground hoje em dia, um pouco por todo o lado. Mas sem lamentos. Conforme é dito no comunicado de agradecimento posto no site oficial, “we might have lost a serious shitload of money but we won so much more.” És grande, Andreas.

Felizmente, tive a oportunidade de apanhar o South Of Mainstream 2010 e o 2012, e serei um dos que hasteará bem alta a sua bandeira quando já todos se tiverem esquecido dele. O que é que fazia deste pequeno ajuntamento de gente amalucada um acontecimento tão especial? É difícil de pôr em palavras, mas começa logo pelo local. O nome, apesar de derivado do nome da editora, está muito bem posto. O raio do sítio é remoto. Algures no meio do mato (vejam aqui o aspecto típico das estradas que nos levam até lá), junto a uma terrinha pacata em territórios da ex-RDA, e até há outra Stolzenhain uns quilómetros antes só para fazer mais confusão. Como podem ver ali no mapa em cima, não é algo em que se tropece. É preciso mesmo querer lá ir. Nunca faltaram, no entanto, razões para isso. Na edição anterior, em 2010, havia atractivos do calibre dos Black Shape Of Nexus, dos Obelyskkh, dos End Of Level Boss, dos The Winchester Club, dos Beehoover, dos primeiros concertos do Wino em formato acústico e da sua nova banda (na altura) Premonition 13, que de tão nova que era, nem nome tinha – nos primeiros cartazes do festival vinha só anunciada como “Wino (electric)”, por oposição ao “Wino (acoustic)” do dia anterior. E havia ainda estes senhores italianos, a tocarem o seu álbum da altura, ‘Eve’, na sua totalidade – de forma tão magnífica que no final do concerto, perante a estupefacção dos próprios músicos, com aquela cara de “quê, querem que toque o disco todo outra vez?”, o público pedia encore. Bom prenúncio para o que nos espera no Amplifest daqui a umas semanas…

Como é costume nestes festivais mais recônditos, algumas propostas menos conhecidas, de impacto mais local, acabaram também por ser magníficas revelações, como por exemplo os Tarentatec, uma espécie de Frank Zappa do noise rock cheio de speeds, ou os tresloucados Bulbul, Dÿse e Ulme, que partiram tudo com uma descontracção imperial. Há que realçar, também, que estamos num ambiente propício à mente aberta. Como deu para perceber no meu post da semana passada, o festival passa-se à beira de um lago, onde por uma vez na vida, não me importei de acampar. Quando lá cheguei, a tendinha já estava devidamente montada, com uma placa com o meu nome à entrada, e com este grau de conforto, até os gafanhotos-bebés que saltitavam por cima dela durante toda a noite pareceram afáveis companheiros de estadia. Esta era a vista que se apresentava quando saía do meu temporário domicílio azul de manhã:

Ajuda, não é? É um festival dado à preguiça, digamos. Desde pessoal a fazer o seu tai chi de boxers logo de manhã à beira do lago (caro Brian Daniloski/Darsombra – j’accuse!), até moças roliças que se cansam de esperar pela disponibilidade dos chuveiros e se lançam numa nadadela matinal em pelota (perante dois cavalheiros a fingir que não se passava nada como eu e o Neil Grant – dos End Of Level Boss – que tentavam, pacificamente, beber a sua bica), é como se fossemos todos uma grande e sossegada família. Como ilustração, eis a zona entre palcos – interior e exterior – num dos seus momentos de maior actividade:

É também um festival de personagens. De figuras residentes castiças, que estão lá quase duas semanas em todas as edições, pelo simples amor à arte, a montar tudo, a ajudar nos palcos e a desmontar tudo no fim. como o Tim, guitarrista dos Rotor, que dorme na sua carrinha com o cão e anda normalmente agarrado a um martelo, ou o impagável Muehle, pau-para-toda-a-obra, condutor de qualquer veículo alguma vez inventado pelo Homem, senhor de respeitável aparência Tom Selleck-esca e com quem mantive animadas conversas apesar de ele não falar uma palavra de inglês, e eu não falar uma palavra de alemão. Não sei como aconteceu, mas aconteceu. Aqui está ele, com uma vara. Não sei porquê.

A estrela do festival é, no entanto, o mítico senhor Scott Weinrich. Faz parte da mobília, e foi nessa edição de 2010 que tomei verdadeiro contacto com a dimensão do génio. É que o Wino não é um gajo normal. Quer dizer, é um gajo normal, mas com uma série de aditivos. É um gajo que me pede para guardar a “criança” (uma garrafa de JD) na minha mala de equipamento fotográfico, “para o caminho”, sim. Mas também é um gajo que, nos 15 minutos que durou uma viagem de carrinha para um jantar, a mostrar como funcionava um programa de composição que tinha no iPhone, começou a inventar riffs de piano e, basicamente, escreveu um tema novo. É um gajo que, num papel qualquer que estava em cima da mesa, fez distraidamente um desenho quase-fotográfico dos seus filhos, escrevinhando ao lado uma letra de um tema futuro dedicado a eles. É um gajo que, ao aperceber-se que eu ia ficar uma noite extra na tenda, sendo que já não havia ninguém na zona de campismo backstage, me convidou a trazer o saco-cama e ficar no quarto de hotel dele, porque “era capaz de haver lobos” naquela mata. Ao chegarmos ao quarto, havia dois pedais totalmente desmontados pelo chão, que ele tinha estado a modificar, gearhead assumido que é. Enfim, é uma figura, e ainda se disponibilizou para uma sessão fotográfica totalmente espontânea, de onde resultaram as fotos que utilizou na promoção do ‘Adrift’, até hoje o meu maior orgulho enquanto aspirante a fotógrafo.

Ao regressar a casa, em 2010, fiz uma promessa pessoal a mim próprio – que nunca mais falhava este festival. Infelizmente, só houve mais uma edição para cumprir na totalidade a promessa, edição essa ainda bem viva na minha ressacada memória, da qual vos falarei detalhadamente na próxima semana.