Tema e Variações: 2 Mil Anos Depois Entre Afrodite e Ares

That's just, like, your opinion, man.

Esta rubrica está quase a terminar e ainda não ataquei um tópico que está subentendido em tantas discussões: a música é arte ou entretenimento? Aceitamos que possa ser as duas coisas, embora se repita exaustivamente que “gostos não se discutem”. Se um portista e um benfiquista podem discutir a qualidade de jogadores de ambas as equipas, também podemos propor uma abordagem mais analítica à música. Não é por sabermos como foi filmada uma cena que um filme deixa de ser absorvente, e não é por pensarmos acerca de música que a sua magia se desvanece.

Tendo em conta o modo como a música nos pode emocionar, um ataque a algo que estimamos pode ser sentido praticamente como uma ofensa pessoal. Mas não será isso um pouco irracional? Seremos arrogantes ao ponto de pensar que a única música de que gostamos é “boa” música? O problema, muitas vezes, é sermos críticos sem sabermos fazer uma crítica. Dizemos que um álbum de uma banda é melhor do que outro porque gostamos mais de o ouvir, e isso, muitas vezes, chega-nos. Não é preciso pensar muito para perceber que estamos, no máximo, a avaliar a nossa resposta emocional, e não a música que a despoleta.

Ainda que as discussões acerca do que é ou não arte remontem, no mínimo, à Grécia Antiga, encaramos geralmente a música como uma criação artística. No entanto, muito do que ouvimos hoje em dia não passa de um passatempo ou de ruído de fundo (música nos elevadores, na sala de espera, em autocarros, no trabalho…). Com bastantes reservas, podemos dizer que a música como entretenimento concentra-se no presente, e a música enquanto arte tem mais consequências para o futuro. A música numa discoteca tem o intuito de pôr as pessoas a mexer, de anular a passagem do tempo e proporcionar um bom momento; um artista mais vanguardista preocupa-se em criar algo diferente de tudo o resto, mostrar uma visão única, apresentar algo que nos faça pensar e que deixe marcas. Gosto de pensar na música dessa forma porque não são categorias mutuamente exclusivas: a música da Madonna ou da Lady Gaga requer bastante talento para ser criada, e a música pop no geral, para não fugir às “fórmulas de sucesso”, tem de se preocupar em apresentar variedade em pequeníssimos detalhes; além disso, géneros que alterem o estado emocional de uma pessoa podem provar-se úteis para o futuro imediato, tornando-nos mais produtivos e fazendo-nos aproveitar melhor o dia, por exemplo. Do mesmo modo, uma banda mais complexa a nível musical ou lírico (Meshuggah e Neurosis, entre tantas outras), que podemos ter prazer em analisar, pode também servir de companhia numa viagem, sem exigirem sequer muita atenção. Com isto em mente teríamos um bom ponto de partida para qualquer debate aparentemente absurdo, como, digamos, “Lady Gaga é melhor do que Meshuggah”. Nem é preciso ir tão longe – não adoro o Pain Is Beauty da Chelsea Wolfe porque tem algumas músicas que me soam completamente banais em géneros que não me dizem muito; ao mesmo tempo, parece-me um disco importante porque reflecte a procura por novos caminhos em vez de se agarrar a uma fórmula que possa repetir até à exaustão. O Apokalypsis entretém-me mais, sem dúvida, mas teria de pensar um bocado antes de dizer que é um trabalho artístico superior. De qualquer forma, procurando distinguir a arte e o entretenimento, as opiniões ficam mais claras.

Peguemos agora nos Amenra, que hoje é um bom dia para isso. Alguém dizer que não gosta da banda porque a voz do Colin é completamente ridícula é uma posição legítima – não apresenta grande variedade, o timbre não é muito agradável, a despreocupação pela afinação causa dissonância a mais. Igualmente legítimo é outro ouvinte ultrapassar isso tudo e separar os Amenra entre instrumentos e voz: as cordas e a bateria a criar um mundo devastador, e a voz, frágil, vulnerável, sempre prestes a falhar, tenta erguer-se uma e outra vez e furar essa parede sonora. A banda pode ser vista metaforicamente como uma prova de resiliência. Se o primeiro ouvinte não souber falar das noções harmónicas e melódicas que instintivamente compreende, e se o segundo não souber traduzir por palavras a sua interpretação da banda, uma discussão entre os dois seria bastante inútil. Quanto a nós, se aprendermos a escutar o colectivo belga como este hipotético segundo ouvinte, podemos perfeitamente valorizar artisticamente o trabalho dos Amenra sem que isso nos impeça de estarmos logo à noite no Hard Club para nos deixarmos entreter.