Tema e Variações: Pela(s) Música(s) do Mundo

Combinando o texto da semana passada acerca de música clássica (ou literata) com a (relativamente) recente notícia do falecimento do Paco de Lucia, tentarei esta semana dar continuidade à problematização de algumas expressões que nos habituámos a usar, por vezes sem as perceber totalmente. Para tal, o texto do Manuel A. Fernandes sobre world music pode servir como mote.

Devo começar por dizer que concordo com algumas críticas à world music que podemos encontrar nesse texto e naquele do David Byrne aí partilhado – simplificação da questão, eurocentrismo, interesses comerciais, etc. No entanto, sinto que há um problema fundamental nessa abordagem (em particular no texto do Byrne) – o da satisfação com o termo “world music” por si só. Parece-me, aliás, intelectualmente desonesto limitar a discussão a essa expressão para depois criticar que “world music” é simplista e agrupa num só termo a música das mais variadas culturas – não podemos dizer exactamente o mesmo de outros géneros? Pela mesma lógica, concluir que os Beatles e os Melvins são bem diferentes torna obsoleto o termo “rock”, porque também agrupa tudo num só género. E esqueçamos a expressão “música ocidental”, porque é insuficiente para explicar as diferenças entre Bach e Britney Spears. Ou, num campo mais próximo da world music, para quê usar a expressão jazz fusão? Fusão de quê, exactamente? Quais as semelhanças – e diferenças – entre Paco de Lucia e Miles Davis?

Byrne critica não só a comercialização da world music como tal, mas também a relutância de bastantes pessoas em ouvir algo que não seja pop ocidental. Ou seja, o público-alvo do seu texto parece ser o americano comum que, mais do que qualquer ouvinte culto, precisa exactamente da categorização “world music” para chegar às sonoridades que Byrne diz que devem ser ouvidas para se expandir horizontes. E criticar a audição despreocupada dessa “world music” é esperar que alguém que apenas se interessa pela música como entretenimento se preocupe com as ramificações culturais e artísticas de culturas estudadas por antropólogos em vez de sociólogos porque a sociologia se prova insuficiente. É pedir bastante do nosso “ouvinte típico”.

Mesmo que haja de facto a tentativa de separação entre “nós” e “eles” (os criadores não-ocidentais da “world music”), nem isso me parece muito negativo – a criatividade é um traço fundamental da espécie humana e a variabilidade nas culturas musicais acaba por ser um reflexo disso mesmo. Acrescente-se a isso que, apesar de a presença de música ser uma característica comum a todas as culturas conhecidas na história da humanidade (a não ser quando é banida por motivos religiosos, por exemplo), há, de facto, algumas diferenças enormes entre algumas culturas e a nossa, em parte influenciadas pelo nosso desenvolvimento da notação musical. Foi o nosso sistema de escrita que permitiu um grande desenvolvimento da harmonia, a ponto de se tornar perfeitamente viável e comum compor música para orquestras de mais de 50 músicos. Numa simplificação exagerada consciente, poderíamos dizer que a Europa é o continente da harmonia, a Ásia, com a sitar ou o shamisen, o continente da melodia, e África, com os tambores polirritmados, o continente do ritmo. Ficávamos assim com uma separação toda bonita das três características-base da música. Mas, como disse, é reducionista e fortemente contestável.

Focando-nos um pouco mais na notação musical, deparamo-nos com um problema curioso: decidimos dividir cada oitava em 12 tons, mas há imensas culturas que não fazem o mesmo. Concluiu-se, no século XIX, que podíamos escrever essa música não com 12 tons, mas com uma divisão da oitava em 1200 partes. Tornou-se assim possível identificar uma nota como sendo, digamos, um “Dó + 25 cents”. Um problema resolvido, mas mantém-se outro: como escrever a música com notas que sobem ou descem a uma determinada velocidade? Com gráficos ilustrativos, fica muito mais fácil escrever algo como o famoso haka dos Maori da Nova Zelândia. O surgimento de meios de gravação ajudou-nos imenso a compreender esses tipos de música, pois agora não precisamos de a ler: basta-nos ouvir.

A preservação da música através de gravações ocorreu bastante cedo, com compositores como Béla Bartók a dedicarem-se a isso desde, pelo menos, 1910. E, apesar de ainda não existir então a expressão world music, já havia preocupações relativas ao melhor modo de comercializar as gravações. O mercado americano acabaria por se provar bastante lucrativo – numa nação formada por emigrantes, inúmeras pessoas agradeceram a oportunidade de mergulhar na nostalgia causada pela música dos seus antepassados. Claro que mesmo essas raízes não tinham a “pureza” que tantas vezes se associa à world music – o ukelele havaiano, por exemplo, surgiu como uma mistura entre o cavaquinho e o ukeke, instrumento local banido pelos missionários portugueses. Nas Filipinas e na América Central, os missionários espanhóis fizeram bastantes mais estragos e, uns séculos mais tarde, a Austrália sofreu o mesmo tipo de invasão destrutiva por parte dos britânicos. Em comparação com isso, não vejo grande mal em preservar músicas de outras culturas sob um rótulo tão frágil como world music.

Claro que questiono também alguns aspecto desta moda da world music que surgiu nos anos 80 e continuou nas décadas seguintes. O primeiro Grammy para Melhor Álbum de World Music foi recebido em 1992 por um americano (Mickey Hart, baterista dos Grateful Dead); nos 10 primeiros anos, 5 dos prémios foram recebidos por brasileiros; em 2004 decidiram dividir o Grammy entre melhor álbum de world music tradicional e melhor álbum de world music contemporânea, mas em 2012 abandonaram a ideia. De qualquer forma, em 2000, ano em que Caetano Veloso ganhou, os restantes nomeados eram Cesária Évora, Ali Farka Touré, Salif Keita, e Afro Celt Sound System; em 2002, quando ganhou Ravi Shankar, Cesária Évora e Afro Celt Sound System estavam outra vez nomeados, bem como Gilberto Gil e John McLaughlin. Como é que se pode comparar música tão distinta?

Para terminar, lembram-se da Sweet Lullaby, do álbum World Mix dos Deep Forest? Dizem-nos que o objectivo era partilhar uma melodia que lhes agradou, mas primeiro tiveram de lhe acrescentar um ritmo banal em estúdio e um coro de crianças a cantar de forma tipicamente ocidental, retirando alguma identidade à voz principal e fazendo-a soar desafinada em comparação. Uma coisa que habitualmente não nos dizem nas compilações de música relaxante é que a melodia original é uma melodia de luto, com a função de confortar crianças que perderam o pai. E sim, o duo francês ganhou um Grammy com o álbum seguinte.