Uma viagem é uma péssima desculpa para não ver um concerto #1
Nos últimos anos, todas as minhas viagens tiveram um propósito: música. É o normal, quando uma obsessão se torna saudável ao ponto de ser respirada e vivida. Aliás, diria que a haver uma característica comum ás pessoas desta casa é essa, a de estar no nível em que a música é mais uma linguagem a que recorremos quotidianamente, ou uma parte do nosso código genético – faz parte das nossas vidas e não é algo que deva mudar. Contudo, nas últimas decidi que ia fazer os possíveis para mandar um tiro ao lado do modus operandi – dava o pior serial killer de sempre – e deixar a música em casa (ou, pior e para minha enorme tristeza, deixei os Mono). Falhei redondamente, claro. As linhas abaixo, para além de serem muitas e longas, são a primeira parte (!!!!) do relato desse falhanço e a minha primeira experiência a falar de viagens sem falar de música. Também falhei nesse aspecto. Vamos assumir que isto foi tudo um êxito, ok?
Posso não ter ido para ver um concerto, ou não ter visto um, mas comigo levei, claro, o belo do leitor portátil, cheio dos humores, das frequências e das palavras que me iam fazendo os dias em casa – não previ, ainda que fosse espectável, que quando o conforto se dilui, os humores alteram-se. A Alemanha, como destino em Fevereiro, é fria e tira-nos a boa disposição e o rubor da cara, e desespera-nos. Ou assim foi comigo. E, fora de casa, o que nos conforta não são, claro, as mesmas coisas. A música, quando é boa, transcende tudo – e a sua beleza, ainda que não tenha fronteiras, nem uma qualquer relação geográfica (tem várias relações sociais, obviamente), é fenomenológica. O branco da neve desperta a atenção para o negro da melodia; a desolação de uma árvore destaca a perfeição de um arranjo; um prédio de arquitectura arrojada ajusta-se à progressão de uma composição menos linear, e por aí fora. Enfim, a interacção com o ambiente faz-nos ver que as músicas têm uma vida própria – ou que são as que têm essa vida que merecem a nossa atenção.
Dusseldorf, para onde fui especificamente, é totalmente diferente do meu quotidiano e tem tudo o que se pode esperar de uma cidade germânica e ainda tem algumas surpresas: é obviamente fria – o que me fez apreciar o que aqui tratamos pelo mesmo nome –; tem árvores despidas de onde o verde, através dos pássaros , não se despede – a fauna voadora podia ser distinguida entre as típicas pombas (bem poucas, felizmente), corvos e, para minha enorme surpresa, uma espécie de araras verdes, que não parecia muito perturbada com a falha evidente na sua camuflagem de primavera –; e tem lagos com cisnes – pensei em aproximar-me deles, mas fui salvo pela melancolia que me levou a ouvir o The Seer e me recordou da origem do nome da banda de Gira (o mau feitio do animal). Mais importante que tudo o que foi acima enumerado, Dusseldorf tem pessoas.
No domingo, na ressaca de uma tentativa falhada de esquecer os Mono, fui a uma “festa” da cidade – iam demolir uma ponte. Lá, a destruição é definitivamente um prazer criativo: das cinzas da ponte, que tinha nos milhares de transeuntes a aproveitar a primeira e última possibilidade para pisar o soalho do viaduto as suas labaredas, nasceu um túnel, inaugurado também por pedestres entusiasmados. Há que sublinhar o entusiasmo. Em cima da ponte ou dentro do túnel, ninguém perdia uma oportunidade de se fotografar, ou de posar para algum flash com sinais de trânsito (e, ou o Samuel Massas é uma grande figura em Dusseldorf, ou a vontade de fotografar o limite de velocidade de 30 km/h deve-se à proximidade com a Holanda e com o excessivo consumo de estupefacientes). Além destes entusiastas, havia os mais berlinescos, equipados a rigor com martelos e outros instrumentos demolidores com o único propósito de levar um pedaço de betão para casa. Este momento teve como banda sonora a própria festa: no início do percurso que levava de um lado ao outro da ponte, em direcção ao novo túnel, havia algumas barracas, estrategicamente posicionadas, que debitavam não a poluição nem a cacofonia do éter germânico, que enriqueceu nódoas como o David Hasselhoff, mas um belo jazz, enquanto se serviam algumas cervejas locais. Finalmente, senti-me literalmente a leste.
Depois deste percurso algo inútil (havia, de facto, um pequeno autocarro que talvez explicasse a importância simbólica do viaduto e aquela romaria de domingo, mas todas as informações que continua estavam escritas em alemão, o que me leva a crer que era para inglês, perdão, boche ver), dirigi-me a um open day de arte, uma exposição dos alunos de belas artes da universidade local. Aqui, sim, senti a viagem a valer a pena: o edifício que recebeu a exposição, pouco largo, mas comprido, tinha uma enorme fila de pessoas para entrar e, uma vez lá dentro, reparei que estava mesmo a abarrotar, com espaço suficiente para movimento sem encontrões e pouco mais, independentemente do movimento que se fazia sentir à entrada. E, sim, estou certo de que os artistas, tratados enquanto tal, pelo menos naquele dia, eram, ainda e apenas, futuros artistas a fazer valer os seus talentos em quatro andares. Cada sala da exposição era curada por um professor, que, de todos os alunos, escolhia os que apresentavam trabalhos mais do seu agrado para exibir no seu expositor improvisado. Pinturas, esculturas, instalações, fotografia, vídeo e até música digladiavam-se saudavelmente pela atenção de uma audiência que parecia ser a cidade toda (convém dizer que este era, na verdade, o último dos vários open days, que duraram uma semana inteira – ou seja, foi uma open week).
Aos alunos que não tinham a honra de ser escolhidos para expor estavam reservados os corredores compridos do edifício – e, curiosamente, a maior parte das minhas peças preferidas estavam fora de quatro paredes, mas, para ser justo, também as que me pareciam mais decoração pechisbeque. Não sei ao certo o que isso diz sobre o meu sentido artístico, as minhas noções de estética ou sobre os meus conhecimentos de pesca, mas também não sei o que um peixe morto dentro de um tanque de vidro com água a exalar o mais pestilento dos odores diz sobre o estado da arte ou sobre professores que a ensinam (diz, talvez, do quão frequentada estava aquela sala; arrisco a avançar os números 2 e 0 para o número de pessoas presentes. E ainda dizem que não se deve fazer compras de estômago vazio). Certo é que neste limbo havia espaço até para legos, o que pode ser sinal que, algures na minha infância, passei ao lado de uma carreira promissora.
Para mim, contudo, a grande obra de arte em exposição locomovia-se, tinha barba grisalha e comprida, a cair sobre os seus trajos andrajosos (pelo menos em comparação com a média, num edifício em que nem os artistas pareciam sem-abrigo – essa moda já deve ter passado), um gorro, óculos e um ar estupefacto. A minha atenção foi imediatamente captada, como se de uma instalação mesmo complexa se tratasse. Mas não havia grande segredo naquele homem, parece-me. A barba comprida não podia, de forma alguma, disfarçar a sua boca aberta, da mesma forma que os seus óculos redondos não escondiam as pupilas dos olhos dilatadas. Na minha ressaca de Aldous Huxley, ponderei logo se aquela personagem se encontrava naquele estado por inalação do ar da sala do peixe, ou se tinha aberto as portas da percepção, mas não me demorei muito a apostar todas as minhas fichas na categoria “grande moca de ácidos” e, dentro daquilo que me era possível, decidi que havia de acompanhar o ritmo do homem. Pus OM a tocar, obviamente. Não que o seu ritmo fosse elevado, mas o seu arrastar irrequieto – ainda que lentamente, o homem não parou um segundo no mesmo sítio – exigia um nível de alucinação equiparável. Fiz o que pude.
Foi, de resto, uma perseguição curta; deu para perceber que ninguém sóbrio se comporta assim, nem nutre um fascínio tão dedicado pela maqueta de um edifício, e que, portanto, deus deve ser bom. Ou meio bom, visto que acabei por saltar a Thebes.
Teria continuado para o Advaitic Songs, mas a minha chegada ao último andar coincidiu com o momento em que reparei que havia música nos corredores. Não fiquei surpreendido ao constatar que estávamos todos a ouvir a She’s Lost Control dos Joy Division, mas deitei os preconceitos fora quando, habilmente, passaram para Autechre. Resta-me saber se os dois rapazes que estavam a jogar xadrez em frente ao sistema de som faziam parte da exposição e, se sim, se era possível levar apenas um deles comigo – tabuleiro eu tenho, adversário é que nem por isso. Isto deu o meu tempo na exposição por encerrado, pelo que voltei ao frio, à rua e ao mini-nevão (que me pareceu, naturalmente, um escândalo digno de alerta vermelho, por muito que houvesse gente de t-shirt na rua. Era, de resto, por haver gente de t-shirt que eu achava que um alerta vermelho era capaz de salvar algumas pessoas da hipotermia).
A exigência quase monástica do clima, a pintar-me a barba, o cabelo e a roupa com flocos brancos, serviu de mote para confirmar que os Neurosis são, ainda (não que alguma vez tenha duvidado disso), os maiores. Também as suas capacidades para afectar sentidos são algo miraculosas, passíveis de explicação racional apenas com uma dose industrial de crença e fé. Assim, que estamos receptivos – e acreditem que a violência e a exigência física de um clima que não é familiar nos tiram a capacidade de mudar a música, nem que seja para não tirar as luvas das mãos, nem estas dos bolsos – eles fazem-nos com Honor Found in Decay o que sempre fizeram. É indescritível, e não creio que seja preciso ir mais profundamente nisto de contar a missa ao vigário, mas trata-se de momentos de franca beleza, uma audição de um disco da banda de Oakland. E expulso deste texto quem pensar, sequer, o oposto. De noite e com a neve a uniformizar o espaço e a isolar-nos numa paisagem que, de repente, parece infinitamente igual, eles pareceram-me a única companhia razoável.
Claro que nem todos os passeios tiveram uma companhia tão pesada. Os Basement, que nunca me haviam convencido, acabaram por me confortar no meu abandono e foram-me arrastando por passeios invariavelmente iguais (a destruição da guerra sempre trouxe as vantagens de um urbanismo geométrico, em que a orientação e a desorientação são separadas pela linha que desenha, no céu, a torre da televisão; como em Berlim e, creio eu, nas demais cidades alemãs).
Acho que estou desculpado por ter faltado a Mono. Pelo menos, depois da trabalheira toda que tive para escrever isto. Existindo deus, ele ia aceitar isto como confissão e respectiva reza de absolvição.