World Music
O tema de que vos falo hoje constituiu sempre uma fonte inesgotável de pérolas musicais fora do status quo. Um filão consistente de propostas inclusivas apartadas por uma visão enviesada e tendencialmente ocidental da música que consumimos. À margem dos veículos de transmissão convencionais, das prioridades da indústria e da rede de contactos estabelecidos. Na semana passada, encetei esta minha coluna mensal na Amplificasom com uma discussão sustentada pelas designações de género e estilo que associamos à música. Que melhor maneira de lhe dar seguimento com uma reflexão sobre a “música do mundo”. Muita gente fala dela a torto e a direito, mas o que raio quer isto dizer?
O termo ‘world music’ revela, inquestionavelmente, uma visão datada, transigente, presunçosa e quase-xenófoba ao encararmos aquilo que se toca e ouve fora do nosso mundinho ocidental. Um resultado transversal e consequente de um visão colonialista e centrada na mecânica industrial do ocidente que estará prestes a eclodir. É uma questão de tempo. Desde os cânticos tibetanos, até ao koto japonês, passando pelos blues maliano, o funk ganês, o afrobeat nigeriano e todas as repercussões do continente negro, dando a volta ao globo terrestre e chegando à calipso de Trinidad e Tobago. O raga indiano, a americana, o tropicalismo, a salsa e o merengue – complementem à vossa inteira vontade com o que me passou ao lado. Tudo se resumiu a um ego desmesurado em confluir indiscriminadamente todas as linguagens musicais que ultrapassavam o entendimento do sistema em vigor. Um plebiscito autocrático que decidiu conservar, estrategicamente, um domínio musical que provinha de um imperialismo cultural. Na mais profética alusão aos descobrimentos, como foi Cristóvão Colombo a descobrir a América, o epíteto foi creditado ao etnomusicologista Robert E. Brown ao desenvolver os seus estudos académicos na universidade de Wesleyan quando, segundo as escrituras, decidiu convidar uma série de músicos africanos e asiáticos para umas sessões de, lá está, world music. A partir daí e sobretudo nos anos oitenta tornou-se normal a utilização natural deste cunho para indigitar música não-ocidental. É claro que a imutabilidade destas balizas foi inapelavelmente questionada pela investigação sociocultural e pela cortina de fumo que, à razão dos crossovers estilísticos, lentamente se desvaneceu. Era um ponto de partida. Os conflitos no interior da própria definição, exteriorizaram-se pela sua própria obscuridade. Se a amplitude era assim extrema – toda a música tradicional do mundo – onde colocaríamos as fusões inevitáveis com a cultura popular do atlântico-norte? Seria então a folk sitiada, sinónimo de música étnica? Óbvio que não. Então, as nossas próprias origens folclóricas poderiam ser consideradas world music da mesma forma? No seio dos nossos berços culturais, como qualificar algo tão embrenhado e unificador como o fado, o flamenco ou a música celta nas proporções certas com o rock? Muitas questões ficaram por responder. Este conceito nebuloso de “local music from out there” prevaleceu até às forçosas evoluções que resultaram em novos sub-géneros e categorias, confortavelmente ligadas a este manto diáfano da world music. Se leram o meu texto anterior, já compreenderam de antemão as regras do jogo. Por exemplo, com o crescente interesse mediático da folk dos balcãs, a música de dança veio fundi-la em várias ramificações regionais como o “manele” romeno, o “chalga” búlgaro, ou o turbo-folk sérvio.
Paralelamente a estes exórdios, a globalização foi mostrando o real alcance da sua importância e a partir daí nada foi como dantes. Este novo advento musical foi a consagração da globalização cultural que muitos já vinham projectando, em linha com a concepção de nação moderna e económica. Novos instrumentos, novas linguagens e códigos, novas inflexões musicais, novas celebrações quase divinas. Por estas insígnias, músicos de todo o mundo vieram incorporar novas escalas, ritmos e modos sonoros na hegemonia presente. Artistas indígenas de toda a parte foram furando um sistema para o qual não foram tidos nem achados, mimetizando com sucesso a logística do seu conteúdo. Carlos Santana, Ravi Shankar, Ali Farka Touré, Paco de Lúcia, Tom Jobim, Nusrat Fateh Ali Khan, foram apenas alguns dos agentes infiltrados mais conceituados que abriram águas para um novo entendimento pleno de representação global.
Como refere David Byrne, neste soberbo editorial para o The New York Times, “So, from a purely democratic standpoint, one in which all music is equal, regardless of sales and slickness of production, this (world music) is a musical utopia.” Na ‘mouche’, para além de ter sido o maior lapso funcional do jornalismo musical da era moderna. O seu consentimento constituiu uma rendição em fronte de uma organização bipolar da música, uma ignorância extrema perante os desenvolvimentos antropológicos da etnomusicologia e uma sonegação, talvez involuntária mas efectiva, da incrível variedade multicultural em contacto com o consumidor/ouvinte. Byrne sabe bem do que fala. Para além de ter fundado e liderado uma das primeiras bandas a juntar as pontas soltas da pop mais expansiva e indómita com referências transcontinentais, fundou também a Luaka Bop editora americana especializada no universo da música latina e da África ocidental. Mas o ilustre vocalista dos Talking Heads nunca esteve sozinho nesta demanda peregrina em promover a música fora da bolha anglo-saxónica. Cicerones como Brian Eno, Michael Brook, Peter Gabriel ou Paul Simon foram responsáveis pela elevação de vários vultos ocultos, pela origem de editoras prestigiadas e pela criação de álbuns pioneiros na colisão worldbeat. Outros, como o cubano Leo Brouwer foram vanguardistas pelo postulado de fusão entre linguagens adjacentes à world music, como o flamenco com a afro-cubana neste caso. Outros ainda, como o percussionista Steve Reich, encetaram quase academicamente, estudos de música étnica e minimalista com noções clássicas da música ocidental.
Com a extenuante democratização da Internet, a comunicação a anos-luz do século XX e a aldeia global que debelou os limites da distância, a velocidade com que se chega a estes nomes chocou, directamente, com as pressões comerciais apresentadas por um risco de homogeneização e a indefinição das identidades regionais. Contudo, isso não passará apenas do estrebuchar da velha e moribunda conjuntura do “nós” e do “eles”. Aberta a caixa de pandora, a indústria continuou engenhosamente a segregar estas culturas a um espaço confinado, defendendo o seu quinhão de terra. O próprio marketing da indústria e a economia a que pertencem transformaram-se e as editoras e músicos que estavam voltados para um grupo de indefectíveis seguidores, perceberam as vantagens desta epopeia mundial e da sua renovação criativa. O reconhecimento mundial ajudou à absorção destas novas culturas e a imigração e permeabilidade ancestral deu um empurrão. Esse impacto foi sentido com os jamaicanos em Londres, com os mexicanos nos Estados Unidos e, porque não, com angolanos e cabo-verdianos em Portugal. Mas onde se fez notar com grande acutilância, ao ritmo de políticas de migração tolerantes, foi em França e em torno da sua capital. Paris tornou-se o grande propulsor de uma certa etnicidade, uma tela para músicos de todo o mundo. Das suas ex-colónias chegaram os ritos dos “Imazighen”, a Raï da Algéria, a Gnawa islâmica. A composição das grandes cidades a oeste do globo pintou-se com novas cores, etnias e sensibilidades. A abordagem deixou de ser unívoca. A ascensão da suposta “world music” a uma categoria superior é directamente proporcional à falência do sangue puro, dos puritanismos e das velhas fronteiras. A era do sampling, da música digital e da produção electrónica sacralizou ainda mais esse facto, expurgando qualquer preconceito dentro da música independente. A definição clássica de world music foi, em parte, criada para incutir uma autenticidade entendida e distinta entre tradições musicais indígenas em relação a outras que, eventualmente, tornar-se-ão diluídas pela cultura pop. Isto é especialmente relevante num contexto onde híbridos world fusion, são tão influenciados pelo consumidor na sua variação estilística como pelos fóruns da indústria que administravam a base da sua distinção, num passado recente. O feitiço virou-se contra o feiticeiro. É engraçado ver agora um coreano maluco como o Psy, independentemente da qualidade que lhe queiram conferir, a assaltar os tops e a desviar os royalties habitualmente destinados a caras pálidas. Tentem imaginar este cenário, há uma década atrás. As world roots passaram a ser trendy e com isso, passaram a pertencer a uma pop mestiça incontrolável. Por isso, os factores de decisão e o lobbying do primeiro mundo (ainda fará sentido usar esta expressão, também) deixaram de relegar este modelo de artistas para um contexto lateral, para uma prateleira “exótica”. O circuito de festivais que sempre foi bastante marginal ainda que interdependente, o tratamento concedido pela imprensa que era escasso e a aposta relutante das editoras, deu lugar um novo fenómeno. Hoje em dia é natural ver um Bombino, uns Bomba Estéreo, os The Very Best ou os Tinariwen nos grandes palcos dos festivais europeus ou americanos. Já temos revistas como a Songlines ou a fRoots a debruçaram-se sobre a ‘música do mundo’ com rigor e especialidade. Para além do papel de múltiplas editoras como a Sublime Frequencies, a Glitterhouse e a Dancing Turtle cada vez mais visível e vincado no espectro das grandes marcas.
Chegará a altura em que esta definição não passará de uma categoria de ordenação para tops, listas pessoais e páginas de resenhas. Será um fóssil preservado nos museus do jornalismo da especialidade. Se já não o é. A world music, como foi entendida neste nosso mundinho rico, branco e loiro já não existe. A transição para o hibridismo e para uma categorização autêntica e sustentada por pilares musicais, é inevitável Felizmente, um dia – que estará cada vez mais próximo – o erro poderá ser corrigido. Na crítica da Songlines a um dos melhores discos de 2013, “Troubles” da parceria australiana-maliana, Dirtmusic, Nigel Williamson tece uma das melhores considerações, para resumir este ensaio: “…if all western rock musicians were as open and adventurous as this, modern pop music would not have got itself into the mess it’s in.” Para bom entendedor…
Manuel A. Fernandes escreve de acordo com a antiga ortografia.