De Stravinsky a Meshuggah
Um bom compositor não imita; ele rouba.
Já que a semana passada foi dedicada a Schoenberg, esta semana pego num dos compositores que ele mais desprezava: Stravinsky. Se ficaram ambos na história da música, foi por motivos muito diferentes, acabando por ser o russo a conquistar o título de compositor mais famoso do século XX. Mas antes de sairmos da Europa Ocidental, e como prometido na semana passada, vamos ver o que se passava com a música europeia.
Paris e Viena eram os maiores centros de produção artística durante o período da Segunda Revolução Industrial, e a música não era excepção. Como em muitas outras áreas, havia grandes diferenças ideológicas entre as duas regiões.
Os alemães concluíram que o contacto repetido com as mesmas obras de música acaba por nos saturar, e que as emoções causadas pela primeira audição seriam perdidas mais tarde ou mais cedo. A única solução seria criar obras cada vez mais intensas, que conseguissem trespassar os nossos corações de pedra. Mais longas, com mais instrumentos, mais complexidade, mais volume – “maximalizar” a música. Exemplos típicos são Brahms e Mahler.
Os franceses, por outro lado, achavam que essa visão estava destinada a fracassar. Tentaram então desprover a música de tudo o que consideravam desnecessário, e até mesmo de emoções intensas, já que elas não passavam de sensações temporárias. Quase que podemos dizer que quiseram fazer música assumidamente intemporal. Basta ouvir a música de Debussy ou Satie (curiosidade: na semana passada, ao perguntar ao Eric de thisquietarmy no fim do concerto no Porto se ele ouvia música clássica do último século, Satie foi o primeiro compositor que lhe veio à cabeça).
Em comum, porém, havia a ideia de que era preciso desenvolver uma abordagem nova à música para um artista se conseguir expressar genuinamente – uma visão tipicamente modernista e que, de certo modo, continua a perdurar (às vezes damos uma importância excessiva à inovação).
Pelo meio foram esquecidas algumas tradições, entre elas a do ballet, que tinha praticamente desaparecido de França há umas décadas. Para o encontrarmos, temos de viajar até uma das últimas grandes cortes europeias: a da Rússia. Não tenho a certeza, mas penso que mesmo Tchaikovsky só começou a escrever ballets a pedido da corte. E, se não fosse esse prazer arcaico da aristocracia russa, talvez nunca tivéssemos chegado a Stravinsky. Sob direcção de Diaghilev, Stravinsky levou o ballet russo a França, mostrando aos franceses que tinham sido batidos numa das suas próprias criações. A surpresa foi grande, e houve de tudo, desde ovações em pé até cenas de pancadaria.
Estas colaborações foram brilhantes, pois Diaghilev e Stravinsky não pegaram simplesmente no folclore russo: misturaram músicas e versos de autores e períodos diferentes para criar algo em conformidade com o estereótipo da Rússia vista pelos franceses. Por outras palavras, o género francês apropriado pelos russos teve de parecer russo para ser apreciado pelos franceses!
Não vale a pena resumir esses três ballets (Pássaro de Fogo, Petrushka, e Sagração da Primavera), a história deles encontra-se em qualquer lado. O que é interessante é que Stravinsky, com 28 anos quando compôs o primeiro ballet da sua vida, conseguiu descentralizar a produção artística europeia, motivar o regresso a géneros antigos, retirar influências folclóricas para criar a sua música, e desenvolver aquilo a que agora, na música, se chama neoprimitivismo e neonacionalismo. Ao longo da sua vida foi explorando vertentes diferentes, e até satirizou as suas próprias composições – depois de ganhar a sua fama como um pioneiro da dissonância, que causava estranheza mas levava as pessoas às salas de espectáculos, compôs obras perfeitamente banais, causando estranheza pela falta de dissonância.
Os Meshuggah não são, de todo, um bom exemplo de música com influências folk, nem faço ideia se retiraram algo da música do seu país – se quisesse ir por esse caminho, mais depressa pegava no Kusturica ou no Yann Tiersen. Mas o título deste post foi inevitável, depois de ter ouvido estas duas músicas na mesma semana:
O que acho interessante nestas músicas é que o ritmo pode ser escrito de forma convencional, mas elas requerem na mesma um esforço por parte do ouvinte. Os tempos fortes são acentuados em momentos que, se não são aleatórios, certamente parecem. Não temos um padrão de referência exterior, pelo que temos de aceitar simplesmente o que a música nos oferece, até a interiorizarmos.
As sugestões desta semana, no entanto, não vão ser baseadas apenas em composições de ritmo irregular: o tal aspecto “popular”, da fusão entre géneros, é das coisas mais interessantes da música. Os próximos compositores vão ser um pouco diferentes, e esta pode ser a última oportunidade de partilhar melodias tão belas quanto “exóticas”.
Excertos de dois dos ballets (o primeiro é uma adaptação para piano bastante popular):
Stravinsky – Le tour de passe-passe (Petrushka)
Stravinsky – Danse Sacrale (Le Sacre du Printemps)
Da Rússia para a Hungria:
Bartók – The Miraculous Mandarin
E saindo da música clássica:
Django Reinhardt – Minor Swing
Alamaailman Vasarat – Asuntovelka
Na próxima semana: De John Cage a Sun Ra